Setembro.
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O dia cinzento pairava sobre o campus, trazendo consigo uma brisa gélida que cortava a pele. O sol, quase como uma lembrança distante, se fazia presente apenas em raios tímidos e dispersos ao fim do horizonte. O céu parecia pesar sobre ela. Serena, no entanto, sentia o suor escorrer por seu corpo, o coração batendo acelerado e o cansaço tomando conta a cada passo que dava. Sua respiração, pesada e irregular, era um reflexo da pressão que sentia sobre si mesma, um peso que ela sabia que só aumentaria ali.
— A última foto! — o homem gritou, fazendo-a estremecer.
Ela olhou para ele, sentindo a tensão tomar seu corpo. A multidão estava à sua frente, perfeitamente alinhada. A beca amarela que usava estava impecável, mas a sensação de ser observada tornava-a ainda mais desconfortável. Serena se curvou, colocando as mãos nos joelhos e tentando recuperar o fôlego. Mas as batidas de seu coração pareciam ecoar mais alto que o restante ao seu redor.
— Não temos o dia todo, formando. — o fotógrafo gritou, um tom de impaciência em sua voz.
Serena levantou-se com esforço, sentindo cada músculo de seu corpo gritar por descanso. Olhou para a multidão à sua frente, buscando o lugar vago que, para seu alívio, era justamente onde ela deveria estar. Ao lado de Peter. O sorriso dele foi como um alívio, mas também causou algo que ela não soubera identificar — um calor estranho que se espalhou por seu peito.
— Está atrasada, senhorita Walker — ele murmurou, uma leve provocação em seu tom.
Serena balançou a cabeça, tentando esconder a incomodidade que sentia. Com a mão trêmula, retirou o capelo e o segurou firmemente.
— Obrigada por me avisar — respondeu, a voz mais baixa do que gostaria, ao voltar sua atenção para o homem atrás da câmera.
O som do clique da câmera fez Serena quase saltar do lugar, mas ela não podia deixar de sorrir. O flash foi seguido pela chuva de capelos lançados ao ar, e foi nesse momento que Peter a pegou nos braços, rodando-a. A sensação de estar suspensa no ar, com o vento a tocando, a fez fechar os olhos por um instante. E, quando seus pés tocaram o chão novamente, ela o sentiu ainda tão perto, tão… real.
— Lamento ter perdido o seu discurso, senhor orador — ela brincou, rindo ao desviar o olhar.
— Se tivesse vindo, teria visto o plágio que eu fiz ao Steve Jobs — Peter respondeu, sorrindo com aquelas covinhas que Serena nunca soubera como lidar.
E ali, no meio daquele caos de formatura, o tempo parecia suspenso. Quando os olhares de Serena e Peter se cruzaram, algo não dito passou entre eles. O coração de Serena disparou, e ela tentou entender o que estava acontecendo. Mas não havia explicação, apenas uma sensação de que algo estava prestes a mudar, ou talvez já tivesse mudado sem que ela percebesse.
Melanie apareceu do nada, interrompendo o momento com um abraço tão apertado que quase derrubou Serena.
— Não acredito! — gritou, seu rosto irradiando uma felicidade contagiante. — O grande dia chegou!
— O dia que todos os estudantes esperam! — completou, com a voz animada, batendo nas costas de Serena com um entusiasmo quase excessivo.
Mas o sorriso de Melanie parecia brilhar demais, e Serena se sentiu como uma sombra ao lado daquela luz. Ela forçou um sorriso, mas algo dentro dela se fechava.
— Tenho uma surpresa para você, Serena — disse Melanie, com um brilho travesso nos olhos.
Peter, ao lado, riu baixinho, e algo naquele som fez o estômago de Serena apertar. O modo como ele olhou para Melanie, com aquele apelido carinhoso de “Mel” escapando de seus lábios, foi o suficiente para alimentar uma sensação amarga que ela tentava ignorar. Havia algo entre eles, algo que ela não queria entender.
Eles se afastaram, e, com uma naturalidade desconcertante, Peter se perdeu na multidão. Melanie, já radiante com sua alegria, não percebeu o peso do silêncio que se formava entre Serena e Peter. Serena sentiu a tensão no ar e, apesar de tentar esconder, sabia que algo não estava certo.
— Vocês estavam fazendo de novo — Melanie comentou, sem cerimônia, como se tivesse acompanhado aquele jogo por anos. Serena apenas revirou os olhos, sorrindo, mas sua mente não estava mais ali. Ela sentiu o vazio do momento e o peso da presença de Peter, que parecia irremediavelmente distante.
— Não estávamos fazendo nada — Serena respondeu, tentando soar leve, mas suas palavras soaram vazias até para ela mesma. A verdade era que Peter ainda mexia com ela de uma maneira que ela não conseguia controlar.
O som da risada de Melanie se afastando trouxe Serena de volta à realidade. Ela o viu novamente, ali, parado no meio da multidão, com um buquê de rosas nas mãos. Ele a olhava, e havia algo em seu sorriso que parecia carregar um peso desconhecido. Serena não sabia o que pensar, mas sentiu uma sensação crescente de desconforto.
— Para a minha futura médica — ele sussurrou, entregando o buquê, e seus olhos brilharam com algo que Serena não soubera decifrar. Ela pegou as flores, sentindo a leveza de seu toque, mas a intensidade do momento quase a sufocava.
“Será que isso é um sinal?”, pensou ela, mas logo se corrigiu, a insegurança tomando conta de seu peito. “Ou é só mais uma das gentilezas dele, como sempre foi?”
E então, o tempo pareceu se arrastar. Melanie, ainda em seu próprio mundo de surpresas e presentes, mal notou a troca silenciosa entre os dois. Serena forçou um sorriso enquanto observava sua amiga abrir o presente de Peter — um colar que parecia ter sido escolhido especialmente para ela. Serena sentiu uma pontada de algo que não queria reconhecer. Inveja? Talvez. Ou apenas a sensação de que sempre faltava algo em sua vida.
— Isso com certeza foi a pior cara de surpresa que eu já vi. Aposto que você e Peter compraram juntos — brincou Melanie, apertando o colar com uma satisfação quase triunfante.
Serena sorriu sem graça, mas sabia que Melanie estava certa. E, no fundo, essa certeza só a fazia se sentir mais distante de tudo.
Os pais de Peter estavam se aproximando, e ele se despediu de Serena com um beijo suave na bochecha.
— Nos vemos mais tarde, Serena? — ele perguntou, a voz baixa, como se estivesse esperando algo mais dela.
Ela olhou para ele, com o buquê ainda nas mãos, e assentiu, tentando controlar a sensação de vazio dentro de si.
— Claro — respondeu, sua voz suave e sem firmeza, traindo o turbilhão de sentimentos que ela não sabia como expressar.
Serena segurou o buquê com força, como se pudesse arrancar respostas das pétalas. Mas a verdade estava ali, inegável, crescendo dentro dela como as próprias flores. E ela não sabia se queria deixá-la florescer.
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O cinza do dia se misturava ao fim do horizonte alaranjado, enquanto uma garoa amena ameaçava cair. Serena permanecia parada na calçada, observando o movimento dos carros diminuir aos poucos. O vento soprava frio, causando inúmeros arrepios à garota, que sentia um leve protesto de sua mente pela falta de um casaco. Levou as mãos à boca, tentando gerar um pouco de calor ao soprar o ar. Estava visivelmente ansiosa pela chegada de sua mãe, que, como sempre, estava um pouco atrasada. Ellis Murray passava seus turnos no hospital com a maior intensidade possível, desde o clarear do dia até o anoitecer, uma rotina desgastante desde a morte precoce de seu pai. No fim, eram apenas as duas.
Seu olhar foi ao pulso, vendo a pulseira que carregava. No fim, Peter estava errado. Ela não poderia desistir de uma carreira brilhante só porque desejava transformar suas fantasias em algo tangível. E mais: aquilo era a única lembrança que ela tinha planejado com seu pai, a futura médica Murray.
Um suspiro escapou de seus lábios, enquanto ela trocava o peso de uma perna para a outra. O toque de seu celular cortou o silêncio da noite, e, meio atordoada, ela levou a mão à bolsa sobre o ombro, abrindo-a para procurar o aparelho. A tela piscava com um número desconhecido.
— Alô, boa tarde. Falo com a senhorita Serena Murray? — A voz feminina do outro lado da linha causou estranhamento. Quem sabia seu nome?
Provavelmente mais uma cobrança, pensou Serena.
— Sim, quem está falando? — respondeu com um tom que demonstrava cansaço e impaciência.
— Senhorita, sua mãe, Ellis Murray, foi vítima de um acidente de carro e deu entrada no Hospital Santa Luz. Encontramos documentos seus com ela, e precisamos que você se apresente. A situação é grave.
A mão de Serena tremeu, e, sem conseguir processar totalmente a informação, o celular escorregou de seus dedos e caiu no chão com um pequeno estalo. A voz do outro lado continuou chamando, mas ela não conseguia mais ouvir.
O mundo parecia girar ao redor dela, e, com os olhos marejados, as lágrimas desceram por seu rosto, agora carregadas de angústia. Uma dor lancinante apertava seu peito, como se sua respiração estivesse faltando.
— Onde? Qual o endereço? — sua voz saiu rouca, tentando se ancorar na única coisa que podia controlar: a ação.
O ambiente da sala de espera era opressor, frio e sujo. A iluminação fraca piscava de tempos em tempos, enquanto o cheiro estagnado de antisséptico misturava-se ao odor persistente de desinfetante. O piso branco já estava manchado de tantas passagens, e o chiado da televisão se juntava ao murmúrio baixo das recepcionistas.
Após horas que pareceram intermináveis, uma voz fina chamou:
— Senhorita Serena Murray?
— Sou eu, — respondeu, levantando-se, com as pernas trêmulas, e seguindo até o balcão.
— O médico a aguardava. Ele quer falar com você. — A recepcionista não desviava o olhar de sua prancheta. — Vá até a última porta do corredor à esquerda.
O corredor parecia um reflexo da sala de espera, com paredes desbotadas e a luz piscando de forma irregular. Mas havia algo mais angustiante: o cheiro mais forte de desinfetante e o eco dos passos de pacientes e funcionários. As expressões nas faces das pessoas eram carregadas de cansaço e tensão.
Serena chegou até a porta do consultório e bateu suavemente.
— Pode entrar. — Uma voz grave respondeu. Ao abrir a porta, o médico se levantou e lhe dirigiu um sorriso caloroso, embora visivelmente cansado.
— Senhorita Murray, imagino que esteja muito preocupada. Sua mãe, Ellis, sofreu um acidente grave. Ela sofreu uma fratura craniana e múltiplas fraturas nas costelas e no maxilar. A condição dela é delicada, e o traumatismo cranioencefálico que ela sofreu tem o potencial de levá-la ao coma, dependendo da resposta do cérebro ao tratamento. — O médico fez uma pausa, observando a reação de Serena. — A boa notícia é que, com o tratamento intensivo adequado, existe uma chance razoável de recuperação. O problema é que o custo do tratamento é elevado, mas podemos ajustar a taxa, considerando sua situação.
Ele pegou uma caneta e, com uma caligrafia firme, escreveu números e observações em um papel, empurrando-o gentilmente na direção de Serena.
Ela olhou para o papel, chocada. O valor era exorbitante, quase todo o dinheiro economizado pela mãe para sua faculdade. O estômago de Serena se apertou, e ela ficou alguns segundos sem saber o que dizer.
— Ela é sua mãe, certo? — O médico perguntou, notando a hesitação dela.
Serena assentiu com a cabeça, tentando engolir a angústia.
— Posso vê-la? — a pergunta saiu tensa, os lábios úmidos e tremendo. — Por favor, faça o que for necessário.
— Não se preocupe, senhorita Murray. Farei o meu melhor para ajudá-la.
Serena foi guiada até o quarto onde sua mãe estava. Ao entrar, um nó apertou em seu estômago. A mulher na cama estava irreconhecível, com o rosto inchado, completamente enfaixado, e vários pontos visíveis. As mãos de Serena tremeram enquanto ela observava a cena.
O medo a paralisou por um instante, e a visão dela se distorceu. Ela correu para o banheiro, sua garganta ardendo de ânsia. A dor tomou conta dela como um peso insuportável. Apoiada sobre o vaso, ela vomitou, a sensação de desamparo a dominando completamente. Seus cabelos caíam desordenadamente sobre o rosto, e a tontura veio rapidamente, como se um choque elétrico tivesse percorrido todo seu corpo.
Ela se levantou, cambaleando até a pia, tentando controlar a respiração, e levou a água fria à boca, tentando apagar o gosto amargo que ficava em sua garganta.
O reflexo no espelho lhe revelou algo que a assustou: sua imagem estava apagada, como se ela tivesse sido sugada pela escuridão daquele momento. Serena sentiu que estava perdendo algo mais do que apenas o controle sobre a situação. Estava perdendo algo de si mesma
Serena nunca foi uma pessoa de acreditar em milagres. Cresceu em um mundo onde a lógica e a razão governavam suas decisões, e a ideia de algo além do tangível sempre parecia distante, até naquele momento. Quando viu sua mãe deitada naquela cama de hospital, completamente irreconhecível, com os olhos fechados e a respiração difícil, o chão sob seus pés simplesmente desapareceu. A mulher que sempre a havia sustentado, que sempre foi o seu porto seguro, agora estava frágil e dependente, sem sequer poder reagir à dor que sentia.
Serena respirou fundo, sentindo as lágrimas escorrendo, mas não permitindo que caíssem completamente. A dor era tamanha que ela sentiu como se sua própria vida tivesse se quebrado em mil pedaços. Ela olhou para sua mãe, com os tubos e os fios conectados a ela, e percebeu que nada mais tinha sentido. As metas que ela havia estabelecido na faculdade, o diploma que tinha acabado de conquistar com tanto esforço… tudo parecia pequeno demais diante daquela realidade.
Serena nunca imaginou que tomaria decisões como essa, mas, naquele instante, sua prioridade era outra. Nada importava além de salvar sua mãe. Ela sabia que o que mais a temia estava acontecendo: sua vida estava saindo do eixo, mas ela não tinha escolha. Abandonar a faculdade nunca foi algo que ela imaginou, mas não foi isso que aconteceu. Serena já estava formada. E ao olhar para o seu diploma, algo lhe dizia que, por mais que estivesse tecnicamente qualificada, a vida da sua mãe era mais urgente. Ela não podia ficar com um pé em dois mundos.
“Eu vou fazer isso sozinha, se precisar,” pensou Serena, secando as lágrimas com a mão.
Ela se mudou para um bairro mais afastado, onde o custo de vida era mais acessível. Vendeu quase tudo o que tinha para bancar a mudança e os custos extras. Melanie, sua amiga fiel, esteve ao seu lado em tudo. A ajuda de Melanie foi um alicerce, mas Serena ainda sentia a solidão engolindo-a aos poucos. Não viu Peter desde a formatura, e embora sua mente tentasse se afastar dele, a saudade e a dor no peito nunca foram fáceis de ignorar. Cada olhar para o seu pulso, onde a pulseira que Peter lhe dera ainda estava, fazia com que sua garganta apertasse e sua alma se partisse um pouco mais.
Melanie entrou na sala com um sorriso forçado, tentando disfarçar a tristeza nos olhos da amiga.
Melanie entrou na sala carregando duas caixas e um sorriso forçado.
— Tudo pronto, fofa. Casa nova, vida nova…
Serena soltou um suspiro cansado, deixando-se afundar no sofá. Sentia cada músculo do seu corpo pesado, como se todo o estresse dos últimos meses estivesse cobrando seu preço. Ela olhou para a janela, observando a rua desconhecida, a sensação de recomeço esmagando seu peito.
— Amanhã eu preciso procurar um emprego — murmurou, sem muita emoção.
Melanie sentou-se ao lado dela, pegando sua mão de forma reconfortante.
— Já ouviu falar das empresas Hall’s?
Serena desviou o olhar para a amiga, franzindo a testa.
— Claro. Uma das empresas que patrocinava eventos na nossa ex-escola. O que tem?
Melanie hesitou por um segundo, escolhendo as palavras com cuidado.
— Meu pai conseguiu algo pra você. Fiz algumas ligações. Ele falou com o dono da empresa e… bom, eles estão precisando de uma secretária.
Serena piscou algumas vezes, surpresa.
— Secretária?
— Sim. O dono é amigo do meu pai. Seu currículo é bom, e com a indicação dele, você já tem um pé lá.
Serena ficou em silêncio por um momento. Trabalhar como secretária nunca tinha passado pela sua cabeça, mas naquele momento, nada mais parecia fazer sentido. Ela só precisava de dinheiro.
— Eu posso tentar, Mel… Qualquer coisa que me ajude agora já vale.
Melanie relaxou um pouco, aliviada por não precisar insistir.
— Eu sei que não era o que você imaginava depois de se formar, mas pode ser temporário. Você ainda vai estar ganhando experiência, conhecendo gente… E o mais importante: vai poder cuidar da sua mãe sem tanta preocupação financeira.
Serena respirou fundo. Não era o que tinha planejado para si, mas também não era hora de orgulho. Ela faria o que fosse necessário.
— Eu vou tentar — disse, finalmente. — Obrigada por isso, de verdade.
Claro! Aqui está a versão revisada com o diálogo que você pediu:
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Melanie sorriu e apertou a mão de Serena, mas havia algo nos seus olhos que não passava despercebido. Um brilho sutil, como se estivesse carregando um segredo que não queria dividir.
— Você não está sozinha, Serena. A gente vai passar por isso juntas.
Serena assentiu, mas o peso da solidão ainda estava lá, imenso e silencioso, como uma sombra que a acompanhava. Ela sabia que Melanie tentava confortá-la, mas havia algo na maneira como ela falava, uma tensão nas palavras, que a deixava com a sensação de que algo estava sendo escondido.
Ela fechou os olhos por um momento, sentindo o peso das palavras. Sabia que Melanie estava certa, mas não podia ignorar a sensação de que não era inteiramente honesta com ela. Mesmo assim, Serena não tinha tempo para questionar. A responsabilidade sobre sua mãe era mais urgente.
— Obrigada, Melanie… — ela disse baixinho, a exaustão marcada em sua voz. Se levantou e a abraçou. — Vou tentar, ok? Só… me ajuda. Não sei se vou dar conta disso tudo sozinha.
Melanie acariciou o rosto de Serena, mas o toque parecia mais mecânico do que afetuoso, como se ela estivesse segurando algo dentro de si. A forma como a abraçou, apertando-a com um pouco mais de força do que o habitual, parecia uma tentativa de transmitir alguma coisa. Mas o que exatamente? Serena não sabia.
— Eu sempre vou estar aqui, para o que você precisar. — Melanie a abraçou de volta, e o gesto foi firme, mas havia uma frieza em sua postura. Como se estivesse se afastando de algo mais profundo.
Serena observou sua amiga se afastar e, embora se sentisse um pouco mais aliviada pela ajuda de Melanie, uma sensação de desconforto a envolveu. A solidão não a abandonava. A casa nova, o bairro diferente, a ausência de tudo o que conhecia… Ela estava começando de novo, mas não sabia se conseguiria aguentar. O que mais desejava era que sua mãe estivesse ao seu lado, dizendo que tudo ficaria bem. Mas, por enquanto, teria que lidar com o que a vida lhe reservava.
Ela olhou para o celular, esperando por algo de Peter. Nada. A sensação de abandono se fez mais presente, como uma faca fria no peito.
— Melanie… — Serena hesitou, a dúvida pesando em suas palavras. — Você... você sabe de alguma coisa sobre Peter? Ele… não tem me procurado. Não sei o que aconteceu com ele.
Melanie ficou em silêncio por um instante, o olhar distante. Havia algo em seu rosto, uma leve tensão que Serena não conseguia ignorar.
— Não sei, Serena. Ele deve estar ocupado com… outras coisas. — Melanie evitou o contato visual, mexendo nas mãos, como se tentasse esconder alguma coisa. — Mas você precisa seguir em frente, não podemos ficar esperando. Há tantas coisas para fazer, e você tem que estar focada agora.
Serena franziu a testa, sentindo um calafrio na espinha. Algo estava errado. Melanie estava escondendo algo, talvez até mais do que ela estava disposta a admitir. Mas, ao invés de continuar pressionando, Serena se sentiu cansada demais para perguntar mais.
— Eu sei… — Ela disse baixinho, sem mais palavras. — Eu só… queria entender.
Melanie a olhou rapidamente, como se quisesse dizer algo, mas acabou se calando. Ela respirou fundo e, com um sorriso forçado, disse:
— Eu preciso ir agora, mas não se esqueça, qualquer coisa, me chama. Estou por aqui.
Serena assistiu Melanie se afastar, uma sensação de vazio crescendo dentro dela. Ela ainda não entendia tudo, mas sabia que havia algo a mais que sua amiga não estava contando. E, por mais que tentasse se concentrar nas responsabilidades diante de si, a dúvida e a sensação de abandono continuavam a consumi-la.
O despertador não tocou. Nem precisava. Serena já estava acordada muito antes do sol começar a tingir o céu de um azul pálido. O frio cortante da madrugada se infiltrava pelas frestas da janela mal vedada, fazendo-a se encolher ainda mais debaixo do cobertor fino.
O apartamento era pequeno, úmido e cheirava a mofo, mas era tudo que ela podia pagar. As paredes descascadas exibiam rachaduras finas como cicatrizes, e o encanamento fazia ruídos estranhos toda vez que alguém no prédio decidia tomar banho.
Ela se levantou, os pés tocando o chão gelado com um arrepio imediato. O chuveiro funcionava de maneira imprevisível, alternando entre água fervente e fria sem qualquer aviso. Depois de um banho rápido e um café forte demais, ela vestiu o casaco surrado e saiu para a rua, ajeitando a bolsa no ombro.
O bairro era um labirinto de ruas estreitas e vielas apertadas, um lugar onde a esperança parecia ter se esvaído junto com a última camada de tinta das fachadas dos prédios.
O vento cortante soprou contra Serena enquanto ela caminhava pelas ruas estreitas e escuras do bairro. O lugar era um labirinto de vielas apertadas, postes piscando de maneira irregular e o som distante de sirenes que nunca pareciam chegar a lugar algum. Ela não deveria estar ali tão tarde.
A mensagem de Melanie havia chegado pouco antes do anoitecer, e Serena, sem pensar muito, decidiu buscá-la. Mas agora, enquanto os prédios ao redor pareciam se fechar sobre ela e cada esquina revelava uma rua diferente da que esperava, o arrependimento começava a se instalar.
Pegou o celular, mas a bateria tinha morrido.
— Ótimo — resmungou, esfregando a testa.
Ela virou outra esquina, e o que encontrou foi uma rua que não reconhecia. As calçadas estavam quebradas, o cheiro de bebida e fumaça impregnava o ar, e algumas pessoas observavam dos cantos, seus olhos avaliando-a de cima a baixo. O aperto na sua garganta se intensificou.
A passos rápidos, Serena atravessou a rua, dobrando mais uma esquina sem olhar para trás. Mas seu erro foi virar em um beco. A escuridão engoliu-a por um instante, até que ela notou uma porta entreaberta, de onde saía o som abafado de risadas masculinas e música baixa. Um bar.
Melhor do que a rua.
Ela entrou.
O cheiro de álcool, cigarro e algo metálico invadiu suas narinas antes mesmo de seus olhos se ajustarem à penumbra do local. O ambiente era pouco iluminado, a maior parte da luz vindo das lâmpadas amareladas pendendo sobre as mesas gastas e do reflexo do neon da rua batendo contra o vidro sujo da entrada. Homens ocupavam os cantos, copos na mão, olhares frios. Mas foi o que estava no centro do salão que fez seu coração parar.
Um corpo.
Deitado no chão, imóvel, uma poça de sangue se espalhando lentamente ao seu redor.
Serena deu um passo para trás, sentindo o terror subir por sua espinha. Foi quando um par de olhos encontrou os dela.
Encostado casualmente contra uma mesa, segurando um copo pela borda, estava um homem. Ele não parecia tão alarmado quanto deveria diante de um cadáver fresco. Pelo contrário, um leve sorriso brincava em seus lábios.
Serena nunca tinha visto alguém como ele antes. Os traços eram afiados, a mandíbula marcada, os olhos escuros demais, como um abismo que puxava qualquer um para dentro. Vestia um terno escuro, diferente de qualquer um ali dentro. Poderoso. Intocável. Perigoso.
Ela tentou dar mais um passo para trás, mas então outro homem se levantou.
— Ela viu.
O ar pareceu se solidificar.
— E daí? — outro respondeu, sua voz carregada de desinteresse.
— Temos que matar ela.
O pânico explodiu no peito de Serena. Seu coração batia contra as costelas como se tentasse escapar antes dela. Sua boca se abriu, mas nenhum som saiu.
Foi então que o homem do olhar sombrio se afastou da mesa e caminhou até ela. Seu passo era lento, calculado, como um predador se aproximando de uma presa acuada. Quando parou diante dela, Serena prendeu a respiração.
Ele a observou em silêncio por um longo momento, os olhos percorrendo cada detalhe de seu rosto, seus lábios entreabertos, o tremor sutil de seus dedos.
— Não. — Ele finalmente falou, e sua voz era calma, baixa demais para alguém que acabara de tirar uma vida. — Vamos brincar um pouco antes.
Um murmúrio correu entre os homens ao redor.
Serena engoliu em seco, sem ousar desviar o olhar.
O homem inclinou a cabeça ligeiramente, um brilho quase divertido nos olhos.
— Vá.
Ela hesitou.
— Anda logo. — Sua voz soou mais impaciente agora. — Quero ver até onde o coelhinho consegue correr.
Seu sangue gelou.
Serena girou nos calcanhares e correu.
Serena correu pelas ruas escuras com o som de seus passos ecoando contra os prédios ao redor, o coração batendo como um tambor frenético no peito. Sua mente estava turva, apenas uma coisa clara: a necessidade de fugir. Ela olhou para trás uma última vez e, por um breve instante, viu a figura do homem em terno. Ele estava parado ali, quase imóvel, mas sua presença preenchia o espaço com uma intensidade que a fez parar no meio de sua corrida.
Os outros homens do bar estavam atrás dela, gritando, correndo, armados. O som das suas vozes raivosas misturava-se com o ruído das botas batendo contra o concreto, mas o olhar do homem de terno a prendia, como uma sombra que nunca a deixaria.
Era uma possessividade clara. Ele a observava, e naquele momento ela soubera que ele sentia algo mais do que apenas o desejo de brincar. Ele queria controlá-la, queria que ela visse sua autoridade de alguma forma inexplicável. Cada passo que ela dava, ele estava um passo atrás, observando tudo, como se tivesse o poder de decidir seu destino, o destino de todos ali.
O medo que sentia era enorme, mas havia algo mais. Algo que a fazia sentir como se estivesse sendo arrastada por uma corrente invisível, uma força que a atraía para ele, uma tensão feroz no ar. O jeito como ele a olhava, com aquele leve sorriso, fazia com que ela se sentisse pequena, vulnerável, mas ao mesmo tempo, alguma coisa dentro dela se rebelava. Algo que dizia para continuar correndo, continuar fugindo… mas seu corpo não respondia tão bem quanto sua mente ordenava.
Ela sentiu uma onda de adrenalina, mas também uma pressão insuportável. Enquanto seus olhos estavam fixos nele, o som dos homens se aproximando a fez voltar à realidade. De repente, a confusão ao redor tomou forma: os outros homens, nervosos e descontrolados, estavam gritando entre si. “Atirem! Mataram ele, temos que matá-lo também!” Uma das armas foi levantada, e tiros foram disparados em direção ao homem de terno, mas ele não se moveu. Era como se a balas não o alcançassem, como se houvesse uma barreira invisível ao seu redor.
Serena viu um homem atirando desesperadamente, mas suas mãos tremiam tanto que a mira estava completamente errada. O homem de terno se manteve ali, impassível. Ele simplesmente não se importava com os tiros, não se importava com o caos ao seu redor. Ele estava acima disso.
E então, ele deu um passo à frente. Cada movimento dele parecia aumentar a tensão no ar, como se o espaço ao seu redor estivesse sendo comprimido. Ele olhou para Serena, e por um segundo, ela sentiu uma conexão, algo profundo e perturbador. A autoridade que ele emanava era quase palpável, como se fosse natural para ele controlar tudo e todos.
Os tiros continuaram a ecoar, mas ele não desviava. Sua postura, firme e calma, era como a de um rei no centro do caos. Um dos homens mais próximos levantou uma faca, correndo para atacá-lo, mas o homem de terno se moveu com uma velocidade impressionante, pegando o braço do atacante e torcendo-o de forma tão brutal que o som do osso quebrando fez Serena se estremecer. O homem gritou, caindo de joelhos no chão, mas o homem de terno nem sequer olhou para ele, seu olhar ainda fixo em Serena, como se estivesse fazendo dela seu alvo.
Serena estancou. Algo em sua mente gritava para que ela fugisse, mas as palavras dele, aquelas palavras sobre brincar, ainda estavam frescas em sua mente. Ele queria brincar. Ela não sabia o que isso significava, mas sabia que, de alguma forma, sua vida agora estava entrelaçada com a dele, de um jeito que não conseguiria escapar tão facilmente.
Ela respirou pesadamente, o pânico se misturando com uma sensação estranha, algo que a desorientava. O homem de terno não a olhava mais como um simples espectador, mas como se fosse algo que ele tinha o direito de moldar. E Serena sentiu isso de maneira visceral. Uma vontade crescente de entender o que ele queria, de entender o que isso significava para ela.
Antes que pudesse pensar mais sobre isso, o som dos gritos e tiros a trouxe de volta à realidade. Ela precisava escapar. E agora, mais do que nunca, o desejo de sair dali crescia como uma chama prestes a consumir tudo. Ela não sabia se conseguiria, mas algo dentro dela sabia que a última coisa que ele queria era que ela fugisse… talvez por isso fosse tão importante que ela fizesse isso.
E assim, ela correu novamente.
Serena entrou em casa, o corpo ainda tremendo, as mãos suadas e os olhos arregalados como se ainda estivesse no meio de um pesadelo. Ela fechou a porta atrás de si com força, quase sem fôlego, como se o simples ato de entrar ali fosse a única coisa capaz de afastar a sensação de perigo que a perseguia.
O som da rua lá fora parecia distante, abafado, como se ela tivesse sido transportada para um mundo à parte. Ela ficou parada por alguns segundos, ofegante, tentando processar tudo o que havia acontecido. O sangue ainda latejava em suas têmporas, e a imagem do homem de terno, com aquele olhar penetrante e cheio de promessas, ainda estava fresca em sua mente. Ela sabia que não podia ficar sozinha com aquele pensamento por muito tempo. Precisava falar com alguém.
Com as mãos trêmulas, pegou o celular do bolso e discou o número de Melanie. Cada segundo de espera parecia uma eternidade, o coração batendo forte no peito enquanto ela aguardava que a ligação fosse atendida. Ela se encostou na parede, fechando os olhos por um instante, tentando recuperar o controle de sua respiração.
— Alô? — a voz de Melanie soou do outro lado, interrompendo seus pensamentos.
Serena segurou o celular com força, a respiração ainda ofegante, e a mente girando a mil por hora. A tentação de contar tudo a Melanie era grande, mas algo dentro dela a impedia. O medo, a insegurança, o receio de que Melanie não entenderia ou, pior ainda, que ela pensasse que estava exagerando. E o pior de tudo… ela ainda não sabia o que pensar sobre o que aconteceu. O homem… aquele olhar… o jeito como ela sentiu a presença dele em cada centímetro da sala… Aquele sentimento de ser observada, de ser controlada, de ser algo que ele possuía, ainda estava em sua pele.
Ela respirou fundo, tentando acalmar o turbilhão dentro de si. Não podia contar agora. Não assim. Não depois do que aconteceu. Ela não sabia como explicar para Melanie o quanto aquilo a havia mexido, o quanto ela se sentia frágil, indefesa, e ao mesmo tempo, envolvida de uma forma que ela nunca tinha imaginado. Como dizer a Melanie que ela estava com medo dele, mas ao mesmo tempo, algo dentro de si desejava entender mais, descobrir até onde aquele homem poderia ir?
— Melanie, eu… — a voz de Serena falhou por um instante. Ela olhou para a janela, tentando se recompor. O vento frio de fora parecia cortar as dúvidas, mas não o medo que ela ainda sentia. — Eu só… queria ouvir sua voz. Preciso desabafar, mas… não sei por onde começar.
Do outro lado da linha, Melanie parecia perceber a hesitação, mas não pressionou. Ela apenas falou com calma:
— Está tudo bem, Serena. Fala quando se sentir pronta. Eu tô aqui pra você, sempre estarei. Mas você está bem? Está segura?
Serena fechou os olhos, balançando a cabeça para afastar as imagens daquele bar, do homem que a observava, e o sangue no chão. Ela não queria que Melanie soubesse de tudo, não ainda. Talvez mais tarde, quando o medo tivesse ido embora, quando ela tivesse conseguido colocar todos os pensamentos no lugar. Ou talvez nunca. Porque, no fundo, havia algo dentro de Serena que sabia que contar tudo significaria enfrentar algo muito maior do que ela queria. E naquele momento, ela não estava pronta para isso.
— Eu estou bem. Só… um pouco cansada. — ela forçou um sorriso, mesmo que Melanie não pudesse vê-lo. — Só precisava ouvir você.
Ela se recostou no sofá, sentindo o peso do corpo, mas a mente ainda acelerada. Como ela poderia explicar o que sentia? Não podia. Não agora. Talvez nunca.
— Eu entendo, Serena. E eu estou aqui, sempre. Vai dar tudo certo.
As palavras de Melanie soaram como um consolo, mas Serena sabia que a verdade era outra. Ela ainda estava sozinha com o que tinha vivido. E o homem de terno, com aquele olhar possessivo, agora fazia parte de sua realidade. Uma realidade da qual ela não conseguia mais escapar, nem mesmo quando a noite caía e ela estava dentro de sua casa, longe de tudo.
— Obrigada, Melanie. — Serena disse, a voz mais suave, um toque de gratidão misturado com uma pontada de tristeza. — Eu só… preciso de um tempo. Acho que é isso.
— Claro, se cuida. Qualquer coisa, só me ligar.
Serena desligou a chamada e ficou em silêncio. A mente estava em um turbilhão, mas o que mais a consumia era o medo de uma coisa que ela não conseguia compreender.
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