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O Orfanato É a Partida

A calma da noite inicial

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Capítulo 1 – A Calma da Noite Inicial

Naquela noite fria, a chuva caía suave e contínua sobre o teto antigo do orfanato. As paredes cinzentas e úmidas pareciam murmurar queixas, misturando-se ao vento. Era a primeira noite de Heitor naquele lugar esquisito, quieto e frio — e a primeira sem os pais. Sua única lembrança era uma foto um tanto rasgada no bolso: seu pai sorrindo e sua mãe o abraçando, como se nada pudesse separá-los. Mas a vida tinha outros caminhos.

Heitor tinha somente oito anos quando um acidente de carro o deixou sozinho no mundo. Ninguém da família apareceu para ajudá-lo. O hospital o enviou logo para o sistema de adoção e, em menos de uma semana, foi deixado no Orfanato Santa Esperança, um nome que parecia falso diante do local.

As outras crianças o encaravam com suspeita. Algumas moravam ali há anos e já tinham aprendido a se defender da dor, criando barreiras ao redor do coração. Heitor, ainda em choque, só queria um abraço. Mas naquela noite, só ganhou um cobertor fino e um colchão barulhento embaixo de um beliche velho.

A supervisora, dona Lourdes, era severa e nada afetuosa. Não por ser má, mas por ter visto muitas crianças chegarem ali com esperança e saírem com a alma ferida. Ela dizia que o mundo era cruel, e o orfanato era só um treino para o futuro.

Heitor não conseguiu dormir naquela noite. Ficou olhando o teto cheio de mofo, sentindo o cheiro forte de desinfetante e ouvindo os pingos no telhado. Em silêncio, ele chorava. Não era um choro forte, que precisa de carinho. Era um choro baixo, de quem já sabe que ninguém vai aparecer para ajudar.

No dia seguinte, foi apresentado às regras: acordar às seis, arrumar a cama, tomar o café — pão duro e leite aguado — e ir para a escola pública perto. À tarde, voltava para ajudar na limpeza e fazer as tarefas. Nos fins de semana, havia trabalhos voluntários: pintar muros, cuidar do jardim, limpar as ruas. A rotina era difícil, mas dava a ele uma certa disciplina.

Meses se foram, depois anos. Heitor foi crescendo, sempre calado, sempre atento. Era inteligente, mas não se destacava. Tirava notas boas, lia muito e evitava as brigas. Tinha poucos amigos — só um, Rafael, um menino que foi para o orfanato depois de fugir de casa por causa do padrasto agressivo. Eles dividiam segredos, planos e cadernos cheios de sonhos quase impossíveis.

Heitor acalentava o desejo de uma vida diferente. Não tinha clareza do caminho, mas almejava estudar, trabalhar e construir algo significativo. Admirava os executivos de terno que avistava em seus carros pelas vias centrais da cidade. Constantemente pensava: "Se eles foram capazes, talvez eu também possa alcançar." Mesmo quando a dúvida o assaltava, repetir tais palavras lhe injetava um certo otimismo.

Ao completar dezoito anos, o momento da partida finalmente chegou. Era um instante esperado com apreensão e receio. O orfanato lhe entregou uma pequena mala contendo algumas vestimentas doadas e um envelope com os documentos essenciais. Nada além. Nenhuma lembrança, nenhuma despedida afetuosa. Somente um "boa sorte" protocolar e a porta se fechando atrás de si.

Heitor desceu a rua com o coração pesado e um mundo desconhecido à sua frente. Não possuía um destino certo, nem alguém que o aguardasse. Contudo, havia uma lição aprendida naquele lugar frio: para sobreviver, teria que batalhar por conta própria.

Com o modesto montante que havia economizado realizando pequenos trabalhos no orfanato — cortando a grama, limpando automóveis, vendendo doces na rua — alugou um quarto diminuto nos fundos da casa de uma senhora idosa. O teto era baixo, o ventilador produzia mais ruído do que ventania, e o colchão continha buracos que se assemelhavam a crateras. Mas era seu. Pela primeira vez, Heitor possuía um espaço exclusivamente seu.

Foi nesse quarto, entre paredes com a pintura descascada e iluminação precária, que decidiu mudar sua trajetória. Recordou-se das palavras de um professor do ensino médio: “Heitor, você tem talento para Administração. É organizado, focado, possui visão. Invista nisso.” Aquela frase ecoava em sua mente. Então, inscreveu-se para o vestibular de Administração em uma universidade pública.

Estudou arduamente com apostilas usadas e vídeos gratuitos em lan houses. Dormia pouco, alimentava-se mal, mas não negligenciava os estudos. Sabia que era sua única oportunidade de escapar do destino que parecia predestinado para ele.

Na noite que antecedeu a prova, fitou o teto do quartinho e sentiu o mesmo silêncio da sua primeira noite no orfanato. Mas, dessa vez, não verteu lágrimas. Apenas respirou profundamente, cerrou os olhos e disse para si mesmo:

— Vai dar certo. Desta vez, vai dar certo.

E com esse pensamento, adormeceu.

os anos de aguardo

Capítulo 2 – Os Anos de Aguardo

No orfanato, o tempo se movia lentamente, como se cada dia fosse arrastado por correntes invisíveis. Os anos eram marcados não por aniversários, mas por despedidas — crianças que eram adotadas ou atingiam a maioridade e partiam sem garantia de volta. Heitor observava cada partida com uma mistura de anseio e tristeza. Ele mesmo nunca foi adotado. Passou despercebido pelos olhares curiosos dos casais que visitavam o local, que preferiam crianças mais novas ou mais alegres.

Aos poucos, compreendeu que o seu futuro dependeria unicamente dele. Não teria uma família à espera, nem um quarto confortável em um lar afetuoso. Tinha apenas as suas mãos, a sua mente e um sonho que surgia pequeno, mas persistente: sair dali e conquistar o mundo.

Durante o ensino fundamental, Heitor não se destacava muito. Era o tipo de aluno que se sentava nas últimas carteiras, evitava conversas e entregava todas as tarefas no prazo. A diretora da escola o via como “aplicado, mas sem vivacidade”. Mal sabiam que a vivacidade estava oculta por trás de uma defesa que ele criou para se proteger da rejeição e da solidão.

Foi no nono ano que tudo começou a se transformar. Um novo professor de matemática, Sr. Jonas, notou em Heitor uma mente perspicaz, uma sede de conhecer o mundo e uma aptidão natural para a lógica e o planejamento.

— Já considerou cursar Administração? — perguntou um dia, ao corrigir um trabalho em que Heitor havia sugerido um plano de arrecadação para a feira da escola.

Heitor apenas encolheu os ombros. Aquilo parecia muito distante. Faculdade, para ele, era para pessoas ricas, com pais e estabilidade.

Mas as palavras permaneceram. Administração. A palavra soava importante. Imponente. Era uma profissão que envolvia decisões, empresas, liderança. E ele apreciava a ideia de planejar, organizar, entender como as coisas funcionavam internamente.

Com o tempo, passou a utilizar os computadores da escola pública para pesquisar sobre o curso. Leu artigos, assistiu a vídeos em canais educacionais e começou a nutrir esperanças, mesmo sem saber como realizaria aquilo.

No orfanato, as regras eram severas, mas ele encontrava tempo para estudar. Lia livros emprestados da biblioteca pública e aproveitava apostilas descartadas por ex-alunos. Trabalhava nas horas vagas limpando pátios, ajudando no depósito de um mercadinho e até vendendo balas no ponto de ônibus. Guardava cada moeda em uma lata escondida embaixo do colchão.

Com apenas dezessete anos, Heitor já tinha traçado seu futuro: deixar o orfanato, alugar um cantinho modesto e prestar o vestibular numa universidade pública. Ele sabia que não teria condições de bancar uma faculdade particular. Seu foco era um só: Administração na Universidade Estadual. Era um dos cursos mais concorridos, mas isso não o intimidava.

No orfanato, as outras crianças viam Heitor como um irmão mais velho, mas também como alguém "diferente". Ele não ambicionava ser jogador de futebol ou influenciador digital. Sonhava com ternos, gravatas, reuniões e planilhas. Seu universo era feito de objetivos e listas, não de sonhos.

Uma noite, no dormitório, Rafael, seu único amigo de verdade, perguntou:

— E se não rolar, Heitor? E se você não for aprovado?

Heitor hesitou por alguns instantes antes de responder:

— Eu tento outra vez. E outra. Até conseguir. Eu não nasci para definhar aqui.

Aquilo tocou fundo em Rafael. Ele sabia que Heitor era especial. Não pelo que falava, mas pelo que fazia. Tinha disciplina, determinação, e uma paixão que nem o orfanato conseguia extinguir.

Ao completar dezoito anos, o dia da partida chegou. Sem celebração, sem comoção. Apenas uma caixa com seus pertences, uma pasta com documentos essenciais, e a porta aberta. A diretora lhe deu um último conselho:

— Você foi um bom menino, Heitor. Espero que consiga se cuidar lá fora.

Ele apenas concordou com a cabeça. Não esperava mais que isso.

Com a ajuda de um conhecido do mercadinho onde fazia serviços extras, achou um quarto para alugar no fundo da casa de dona Judite, uma senhora viúva que vivia de aposentadoria e alugava dois quartos para estudantes de baixa renda. O quarto era diminuto, com paredes descascadas, cheiro de umidade e sem janela. Mas era suficiente. Era liberdade.

Ali, com uma lâmpada pendurada e um ventilador ruidoso, organizou sua "base de estudos". Improvisou uma mesa com blocos de concreto e uma tábua de madeira. Colou folhas de metas na parede e horários de estudo escritos à mão. Era o começo.

Estudava até tarde, mesmo com fome. Tomava café forte e comia pão amanhecido para acalmar o estômago. Pegava apostilas de cursinhos populares e assistia videoaulas em lan houses, pagando por hora. Às vezes, pedia ajuda a colegas da escola. Quase nunca tinha dinheiro para imprimir resumos. Anotava tudo à mão.

A inscrição para o vestibular foi feita com o apoio da assistente social do orfanato. Ele escolheu o curso sem hesitar: Administração. A prova seria em dois meses. Ele teria 60 dias para alcançar quem estudava há anos com recursos e cursinhos caros.

A situação era complexa, gerando frequentes momentos de abatimento. Por vezes, a ideia de abandonar seus objetivos o assaltava. No entanto, um simples olhar para o teto deteriorado, a lembrança do aroma característico do orfanato, do pão amanhecido com leite ralo e do isolamento da juventude eram suficientes para reanimá-lo. Ele almejava uma vida melhor. Acreditava ser merecedor de mais.

Na antevéspera do exame, dirigiu-se a pé ao local de aplicação — um colégio técnico situado na região central da urbe. Chegou com antecedência, analisou a entrada, os demais concorrentes deixando as aulas preparatórias, os grupos gargalhando e exibindo mochilas novas. Sentia-se diminuído, quase imperceptível. Contudo, respirou profundamente e mentalizou: "Amanhã, retornarei a este lugar. E darei o meu máximo naquela prova."

Durante a noite, o sono tardou a chegar. Refletiu sobre sua genitora. Sobre seu progenitor. Sobre o compromisso assumido.

A partida

Capítulo 3 – A Partida

Domingo nasceu cinzento, o céu carregado de nuvens pesadas. A brisa gelada, mas Heitor quase nem percebeu. A adrenalina, uh, ainda pulsava, mesmo depois de quatro horas na prova da faculdade. Saindo do prédio, exausto, pernas bambas e mãos molhadas. Andou lento nas calçadas desertas, tentando lembrar o que acertou — e, ah, claro, o que deixou em branco.

— Dei o meu máximo — sussurrava, tipo um mantra, apesar de não saber se tinha sido o bastante.

Chegando no seu quartinho, jogou a mochila no chão e se esticou no colchão magro. O teto rachado o observava. O silêncio, quase total, só interrompido pelo zumbido do ventilador velho e os sons distantes da rua.

Ninguém pra dividir aquilo com ele. Sem amigo pra falar da prova, sem família pra saber se estava ansioso. Só o vazio ali.

Era mesmo isso o motivava ele queria preencher esse vazio com triunfos, com glorias, com algo que afinal fizesse sua vida valer a pena.

Nos dias depois, a ansiedade começou a consumi-lo. Cada manhã era uma mistura de esperança e terror. Tentava manter a cabeça ocupada, fazendo uns servicinhos pra vizinhança lavava carros, fazia entregas, consertava coisas simples. Era pouco dinheiro, más era o bastante pro café, o pão de ontem e, ás vezes, uma quentinha barata no boteco da esquina.

Dona Judite, a senhora que alugava o quartinho pra ele, gostava dele. Achava-o educado, esforçado, “diferente dos outros garotos que passam aqui e só querem confusão”, como ela falava. De vez em quando, deixava um prato com arroz e feijão na porta, como quem faz caridade sem confessar que esta ajudando. Heitor sempre agradecia com um sorriso tímido.

O tempo passava, vagaroso e cruel. A espera pelo resultado parecia infinita. Heitor sonhava toda noite com a faculdade. Imaginava-se sentado numa sala, com livros novos, uma mochila boa, ouvindo os professores falar sobre empresas, estratégias e liderança.

Mas a realidade, oh sim, ela chegava com tudo durante o dia, batendo na porta. Literalmente, a cobrar. O dono da quitanda, implacável, cobrava pelos fiados. O ventilador? Deu pane. Água, nem pensar, faltou por uns dois dias. Teve que vender, acredita, o relógio, um presente de um ex-voluntário do orfanato, pra comprar sabonete, arroz e aquele sabão em pó.

Mas, ainda assim, ele resistia bravamente. Devorava os livros emprestados da biblioteca, lia jornal velho pra entender, sabe, mais de economia, e anotava toda palavra nova que ouvia nas ruas. Ele sabia, aceito ou não, precisava estar preparado. O ingresso na faculdade, ufa, não era o fim, não. Era, de verdade, só o começo.

Até que, numa quarta de manhã, o silêncio foi estraçalhado por um grito da vizinha: — Saiu o resultado da Estadual! Tá no site!

Heitor, num choque, congelou. Estava sentado no chão, remendando o zíper da mochila, usandos linhas de costura emprestadas. O coração, disparou! Correu, como pode, até a lan house mais próxima, com a grana que tinha, uns míseros R$2,50, uns 15 minutos na internet.

O atendente, ah, ele conhecia o Heitor de vista. — Hoje é o dia, hein, guerreiro? Vai lá!

Heitor sentou, com os dedos ali, tremendo...

Digitou o endereço do site, buscou a lista dos aprovados, e no fim, encontrou sua inscrição.

O nome surgiu.

Heitor Oliveira da Silva – Administração – Aprovado!

Ele leu, leu de novo. Não conseguia crer. Fechou os olhos com força, pensando que podia ser outro Heitor. Mas, era ele. Seu CPF, seu nome todo. Era verdade.

Ficou paradão, alguns segundos. As mãos suavam, a garganta travou. Logo, se levantou e saiu da lan house, sem dizer uma palavra. Andou sem direção por umas quadras, em choque. Quando finalmente se tocou, tava sentado no meio-fio da praça central, rindo e chorando tudo junto.

— Eu consegui! Eu consegui!

A frase saiu, como um sussurro, mas parecia ecoar por toda a cidade.

Naquela noite, dormiu sem medo pela primeira vez. Com a certeza que, mesmo com tudo em sua contra, ele tinha ganho a primeira luta. A maior de todas, certo?

Porém, a alegria durou pouco. Logo após a euforia, veio a real: ele não tinha como pagar o material, a passagem, a comida. A matrícula era pessoal, e ele precisava comprar pelo menos uma camisa legalzinha. Precisava se virar, novamente.

E foi o que fez.

Trabalhou arduamente nos dias seguintes, com afinco. Consertou torneiras, limpou pátios, ajudou numa mudança familiar. Em troca, alguns cobres, roupas usadas, e esperanças de indicações...

Uma semana se passou, rumando para a faculdade, com mochila velha e documentos, camisa "pega", cortesia de Rafael, agora morando com um parente.

A fila, gigantesca. Jovens bem-apessoados, sorrisos com pais. Heitor, de novo, solitário. Mas, altivo! Internamente, um grito:

— Conquistei. Cheguei!

Matrícula efetuada, papéis em mãos, um troféu imaginário.

No ponto de ônibus, sentou ao lado de uma jovem, cabelos castanhos longos, olhos brilhantes. Ela o fitou, um sorriso, perguntando:

— Administração também?

Heitor, atônito, respondeu:

— Sim, me inscrevi agora.

— Eu também, sou Beatriz.

Essa a primeira conversa com a moça mais linda da faculdade. Ele, por hora, ignorava.

Ele só sabia de uma coisa que, daquele ponto em diante, sua vida ia mudar, isso devagar, dolorosamente, sim, mas ia.

E ele, tava pronto pra tudo.

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