A chuva caía incessante naquela noite, como se o céu estivesse em luto, compartilhando a dor de Dambis. Ele estava sentado à beira da janela, o caderno sobre as pernas, com a caneta em mãos, mas seus olhos, fixos nas gotas que escorriam pela vidraça, estavam distantes. O som dos trovões fazia o mundo parecer mais pesado, mais denso, e ele se sentia pequeno diante da vastidão da escuridão. A cada relâmpago, uma lembrança de sua mãe vinha à tona — o sorriso dela, o calor de suas mãos, a maneira como ela amava a chuva como ele. Ela nunca disse adeus, mas na última noite, ela partiu silenciosamente, deixando-o com apenas o som da tempestade como companhia.
O tempo, aquele inimigo cruel, parecia se arrastar quando Dambis olhava para o vazio. Mas, como sempre, ele escrevia. Poemas, frases soltas, pensamentos vagos. Sua mente criativa buscava algo para preencher o buraco que sua mãe havia deixado. Cada palavra escrita era uma tentativa de capturar o que restava dela, uma busca desesperada por um pedaço do "sempre" que ela lhe prometera.
"Como se a chuva pudesse apagar a dor", ele escreveu, e sorriu, mesmo sem vontade. Mas a verdade é que, por mais que ele escrevesse, por mais que ele tentasse preencher o vazio, algo dentro dele gritava que nada jamais seria suficiente. Ela estava lá e, de repente, não estava mais.
No hospital, ele não sentia o peso da doença ainda, mas a leucemia o observava à distância, como uma sombra que se aproximava sem fazer barulho. Mas, dentro dele, a mente criativa ainda vivia — os versos fluíam, mas o corpo se sentia cansado, exausto, como se o tempo estivesse se esvaindo. Ele queria acreditar que, ao escrever, poderia encontrar uma maneira de reverter tudo, como se as palavras tivessem o poder de salvar o que o corpo não podia.
Então, em um canto solitário do hospital, onde o som da chuva se misturava ao farfalhar das folhas e ao zumbido distante das máquinas, Dambis viu Yami pela primeira vez.
Ela estava sentada sozinha em um banco, com um caderno em mãos, sua expressão vazia e cansada. Mas havia algo ali, algo que ele não podia identificar de imediato. Uma quietude que o atraiu, como se ela fosse, de alguma forma, uma extensão da dor que ele carregava.
Os olhos dela encontraram os dele por um momento. Dambis não disse nada, mas Yami, sem um pingo de surpresa, se aproximou e, sem dizer uma palavra, sentou-se ao seu lado. Ela não o encarou com curiosidade, mas com a calma de quem já soubera o que era perder algo irrecuperável.
"Você também escreve?", ela perguntou, finalmente quebrando o silêncio.
Dambis olhou para ela, sua mente confusa, e, por um momento, imaginou o que ela poderia estar pensando. Ele não sabia se ela entendia, se ela sentia a mesma dor. Mas algo nele respondeu com um simples aceno de cabeça. O que mais havia para dizer? O que poderia ser dito?
"Às vezes, escrever é tudo o que resta", ele murmurou, com um sorriso vazio nos lábios.
E assim, no silêncio de uma noite chuvosa, onde a dor e a esperança se entrelaçavam, duas almas se encontraram. Uma buscando a memória perdida de um amor, a outra buscando escapar do peso do que a doença tomaria.
Era o começo. Ou seria o fim?
A chuva continuava a cair, fina e persistente, como se o céu nunca fosse se cansar de lamentar. No hospital, o mundo parecia suspenso no tempo — o branco das paredes, o cheiro de éter, o som abafado das máquinas monitorando vidas que se equilibravam entre o agora e o nunca mais.
Dambis sentia o peso do lugar, mas a presença de Yami era um desvio inesperado daquela monotonia sufocante. Ele ainda não sabia o que pensar sobre ela. Não era como se tivessem trocado grandes palavras. Apenas a chuva, os olhares e o entendimento silencioso que só aqueles que convivem com o fim conseguem compartilhar.
Ele a observava de canto de olho enquanto rabiscava no caderno. Não era um poema, não ainda. Apenas fragmentos.
"O tempo dança, mas para onde ele vai?
Os ponteiros correm, mas nunca chegam a lugar algum.
Será que o fim é só o começo de outro vazio?"
Suspirou e fechou os olhos por um instante. Yami, ao seu lado, não disse nada. Mas ele sentiu que ela estava lendo.
— Você escreve para fugir ou para se encontrar? — a voz dela soou baixa, mas firme.
Dambis abriu os olhos e virou o rosto lentamente. Yami não o encarava diretamente; seus olhos estavam fixos na chuva lá fora. Mas ele sabia que a pergunta não era vazia.
Ele pensou na resposta. Pensou nas noites em claro, na febre que vinha e ia, no gosto metálico do medo quando o médico lhe dissera o diagnóstico. Pensou na ausência da mãe, no silêncio do quarto dela, na falta daquele sorriso que antes preenchia tudo.
— Escrevo porque não sei o que fazer com o tempo.
Yami soltou um pequeno riso nasalado, sem humor.
— Engraçado. Eu escrevo porque o tempo está acabando.
Os dois ficaram em silêncio novamente. A chuva continuava.
Dambis se perguntou há quanto tempo ela estava ali, quanto tempo ainda lhe restava. Perguntou-se se ela também pensava em quem deixaria para trás, se havia alguém esperando por ela fora dali.
Ele não soube o que dizer, então apenas voltou a escrever.
"Se o tempo fosse feito de papel,
eu rasgaria cada página que me condena."
Yami pegou o próprio caderno. Dambis percebeu que a capa era escura, gasta pelo tempo. Ela passou os dedos sobre as páginas amareladas e, sem olhar para ele, começou a escrever também.
A chuva lá fora se intensificou. E, de alguma forma, naquele instante, não importava mais quanto tempo restava para cada um deles.
O silêncio entre eles se estendia, mas não era desconfortável. A chuva batia na janela com uma força crescente, acompanhada dos trovões distantes, como se o próprio céu estivesse compartilhando suas emoções. O som das gotas que se chocavam contra o vidro se tornou um ponto de conexão, um vínculo invisível entre as duas almas que se entendiam sem palavras.
Dambis observava os dedos de Yami deslizando pela caneta, rabiscando no papel com uma suavidade desconcertante, como se cada palavra fosse um alívio para algo profundo que ela guardava. Ele não sabia o que ela escrevia, mas a quietude no ar dizia que estava escrevendo para si mesma, algo íntimo, talvez mais verdadeiro do que qualquer conversa que poderiam ter.
O tempo, esse inimigo invisível que insistia em correr, parecia se arrastar lentamente naquele quarto de hospital, mas, ao mesmo tempo, se expandia. A mente de Dambis se sentia sufocada pelo peso do futuro, mas suas mãos continuavam a escrever, como se as palavras fossem uma tentativa de ancorar sua mente na realidade.
Ele não queria pensar no fim. Não queria se perder na ideia de que a morte estava se aproximando de forma implacável. Então, ao invés disso, escreveu:
"O tempo se desfaz, como poeira ao vento,
mas será que ele pode ser salvo?
Será que, ao final, ele se lembra de nós?"
Yami parou de escrever por um momento. A caneta, que antes corria suavemente sobre o papel, agora estava imóvel em suas mãos. Ela olhou para Dambis, os olhos profundos e sombrios, como se estivesse pesando as palavras que ele havia escrito.
— O tempo não se lembra de nós — disse ela, a voz agora mais baixa, quase um sussurro. — O tempo nos esquece, Dambis. Não importa o que fizemos, não importa quanto tentemos segurar.
Ela fez uma pausa, como se as palavras que saíam de sua boca fossem um tipo de confissão, algo que ela não costumava compartilhar com facilidade.
— Mas as palavras... as palavras permanecem. Elas têm o poder de nos guardar. Mesmo quando o tempo nos leva embora, nossas palavras ficam. Elas são como fragmentos de algo que resistiu. Algo que, talvez, nunca se acabe.
Dambis sentiu um arrepio na pele, não apenas pelo que ela disse, mas pela maneira como ela falou. Como se ela conhecesse, de alguma forma, a dor que ele tentava esconder. Ele não respondeu imediatamente, sentindo o peso de suas próprias palavras no ar.
— Então, por que escrever? — ele perguntou, sua voz mais suave do que ele pretendia. — Se nada do que fazemos importa no fim?
Yami olhou para ele, os olhos estreitos, como se estivesse tentando decifrar a pergunta.
— Porque, mesmo que o tempo nos apague, aquilo que escrevemos nos torna imortais, mesmo que seja por um instante. Nossas palavras podem ser esquecidas, mas o eco delas nunca desaparece totalmente. E, quem sabe, alguém ainda poderá ouvir esse eco.
Dambis ficou em silêncio por um momento, absorvendo o que ela dissera. Ele sentia que suas próprias palavras eram apenas um grito abafado, uma tentativa desesperada de encontrar algo em meio ao caos. Mas, ao mesmo tempo, ele sentia a verdade no que Yami dizia.
Ele olhou para o caderno em seu colo, as palavras escritas ali, tão pequenas diante do que ele sentia, mas, talvez, fossem tudo o que ele poderia oferecer.
E, de repente, ele se deu conta de que talvez as palavras fossem mais do que um alívio ou uma fuga. Talvez fossem o último laço que ele teria com a mãe, com sua própria vida, com o mundo que ele estava prestes a deixar para trás. E, mesmo que a morte estivesse à espreita, havia uma espécie de liberdade nas palavras. Uma liberdade que o tempo não poderia levar.
Ele pegou a caneta novamente, com uma decisão firme. Olhou para Yami, que ainda estava ali, ao seu lado, compartilhando o momento, e escreveu:
"Mesmo que o tempo se apague,
nós persistimos nas palavras.
E, por um instante, somos eternos."
Yami leu as palavras e, pela primeira vez, um sorriso suave apareceu em seu rosto. Era um sorriso pequeno, mas significativo, como se ela finalmente tivesse encontrado um terreno comum com ele.
Eles continuaram a escrever em silêncio, com a chuva lá fora como a única testemunha do que se passava no interior daqueles dois corações. O tempo continuava a correr, mas agora parecia um pouco menos urgente, um pouco menos assustador. No final, talvez o que restasse não fosse a luta contra o tempo, mas a capacidade de criar algo que o tempo não pudesse destruir.
A chuva cessou ao amanhecer. Restaram apenas as gotas pesadas escorrendo pelos vidros do hospital, como lágrimas que a noite havia deixado para trás. O ar ainda tinha um cheiro úmido, misturado com o odor frio dos corredores brancos e solitários.
Dambis despertou antes do sol nascer, mas não se moveu. Ficou ali, deitado, ouvindo a respiração baixa e ritmada de Yami no outro leito. Não sabia se ela dormia de verdade ou se apenas fingia.
O tempo era estranho no hospital. Dias e noites se misturavam, e às vezes parecia que nada ali realmente existia. Como se o mundo de fora fosse um sonho distante, algo que nunca mais voltaria a tocar.
Yami se mexeu, virando-se para ele. Seus olhos estavam abertos, mas não havia surpresa em seu olhar.
— Você também não dorme? — perguntou, sua voz rouca pelo silêncio da madrugada.
Dambis deu de ombros.
— Acho que o sono não gosta de mim.
— O sono não gosta de ninguém aqui. — Ela soltou um meio sorriso antes de se sentar na cama, abraçando os joelhos. Seu cabelo caía sobre os ombros magros, bagunçado.
Ele olhou para o lado e pegou o caderno, virando algumas páginas rabiscadas.
— Por que escreve? — perguntou, devolvendo a pergunta que ela fizera no dia anterior.
Yami ficou em silêncio por um tempo. Não parecia surpresa com a pergunta, mas também não tinha pressa para responder.
— Porque a vida precisa de testemunhas.
Dambis ergueu uma sobrancelha.
— Testemunhas?
Ela assentiu.
— Se ninguém escreve, ninguém se lembra. Se ninguém se lembra, foi como se nunca tivéssemos existido.
Ele refletiu sobre aquilo.
— Mas se o tempo esquece de qualquer forma… então qual a diferença?
Yami sorriu, mas havia algo melancólico naquele sorriso.
— A diferença é que enquanto alguém nos lê, ainda estamos vivos.
Dambis desviou o olhar para o céu do lado de fora da janela. Estava limpo agora, as nuvens negras haviam se dissipado, dando espaço para o azul fraco do amanhecer. Ele se perguntou quantos dias ainda restavam para ele.
Quantos amanheceres ainda veria?
— Você tem medo? — perguntou, sem encará-la.
O silêncio se estendeu entre eles.
— De quê? — Yami devolveu a pergunta.
Ele sabia o que ela queria dizer.
— Do fim.
A resposta demorou, mas veio.
— Eu tenho medo de não deixar nada para trás.
Dambis olhou para ela. Pela primeira vez, viu algo além da ironia e da calma forçada. Viu uma verdade crua nos olhos dela.
— Você vai deixar — ele disse, sem saber exatamente por que estava tão certo daquilo.
Yami riu baixinho.
— Você também.
O sol começou a aparecer no horizonte, pintando o céu com cores suaves. O tempo não parava, não esperava. Mas ali, naquele instante, parecia que ainda havia algo a ser escrito. Algo que ainda precisava ser dito.
Yami pegou o caderno e rabiscou algumas palavras antes de fechá-lo com um estalo leve.
— O que escreveu? — Dambis perguntou.
Ela sorriu, mas não respondeu.
E, por algum motivo, ele sentiu que um dia descobriria.
O tempo ainda estava correndo. Mas, por enquanto, eles estavam ali.
E isso era o suficiente.
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