No dia em que embarquei para o Brunei, peguei o metrô rumo ao hospital Beth Israel, carregando uma mala verde estampada com flores. A última vez que havia usado essa mala foi quando deixei definitivamente meu quarto no Hayden Hall, na Universidade de Nova York, e levei todas as minhas coisas para fora do elevador até a calçada, de onde as transportei de táxi para o Lower East Side. Lá, uma amiga de uma amiga tinha um quarto disponível para alugar. Antes disso, a ocasião mais marcante foi quando minha mãe me ajudou a esvaziar a mala, cheia de roupas de universitária, pijamas etiquetados e saquinhos fechados com bolachas caseiras de chocolate. Sempre que abria essa mala, ela guardava planos cuidadosamente dobrados. E, toda vez que a fechava novamente, era sinal de que estava em movimento outra vez.
Com esforço, ergui a mala degrau por degrau, parando para descansar antes de finalmente alcançá-la ao topo da escada, onde um retângulo de luz se abria para o agitado movimento da Fourteenth Street. Sob o meu pesado sobretudo de inverno, minha camisa já estava colada às costas, úmida de suor. Eu não tinha percebido o quanto havia colocado na mala. Passei horas diante do guarda-roupa, esperando que o vestido perfeito surgisse magicamente em meio a uma chuva de brilhos, voando pela porta nas asas de um bando de pássaros azuis.
Afinal, estava indo para um baile real, não estava? Prestes a conhecer um príncipe, como poderia minha fada madrinha me deixar com uma seleção tão decepcionante de roupas? Mas, ao que parecia, deixaria.
No fim, optei por embalar dois ternos sob medida, três vestidos de baile estilo anos cinquenta, uma coleção de roupas íntimas vintage que agora usava como peças externas, dois vestidos de verão hippies, um short de couro e algumas leggings brilhantes. A mistura pouco prática pesava mais do que deveria. Ou talvez fosse o peso da culpa por deixar meu pai doente para trás em troca de uma aventura em terras estrangeiras. Seja como for, eu ainda não tinha aprendido a viajar com pouca bagagem. Caminhei em direção ao hospital, misturando-me ao fluxo incessante de pedestres e me deixando levar pela sensação coletiva de propósito.
Meu pai estava prestes a ser submetido a uma cirurgia para corrigir uma hérnia do hiato paraesofágica, uma condição em que parte do estômago se desloca para cima através de uma abertura no diafragma, conhecida como hiato, posicionando-se ao lado do esôfago. O principal risco dessa condição é o estrangulamento do estômago, o que pode interromper sua circulação sanguínea. As hérnias do hiato são mais comuns em pessoas obesas ou sob intenso estresse, ambas características que descreviam meu pai. Em 1991, esse tipo de cirurgia era arriscada e invasiva, exigindo uma incisão extensa entre o esterno e as costas. Inicialmente, prometi à minha mãe que estaria lá para ajudar, mas quando surgiu a oportunidade de emprego no Brunei, mudei de ideia.
Essa minha constante necessidade de movimento talvez fosse algo genético. Minha mãe biológica me chamou de Mariah, inspirada na música "They Call the Wind Mariah", do musical Paint Your Wagon. Talvez ela soubesse que, pouco depois, eu seria levada pelo céu em um 747. No entanto, o nome não durou. Minha mãe adotiva me renomeou Jill Lauren, sem motivo específico, apenas porque gostava do som. Sendo atriz amadora, achava que Lauren seria um bom nome artístico, caso eu precisasse – e acabou acertando.
Apesar de ter sido batizada em homenagem ao vento, meu signo é puro fogo. Nasci em meados de agosto de 1973, em Highland Park, Illinois. Na época, o caso Roe versus Wade ainda estava em discussão, sendo decidido apenas em 22 de janeiro de 1973, quando minha mãe biológica já estava grávida de quase três meses. Não sei se ela considerou abortar, enfrentando as mudanças de seu corpo esbelto de bailarina, a fuga de um namorado passageiro que simplesmente foi embora e nunca mais voltou, e o vento gélido que soprava do lago, congelando as ruas de Chicago.
A mais de mil quilômetros de distância, em West Orange, New Jersey, um jovem corretor da bolsa e sua esposa viviam desesperados para ter filhos. Era uma época marcada por adoções duvidosas, processos sigilosos e o que meu pai chamava de "mercado cinzento". Eles entraram em contato com um advogado que conhecia uma jovem grávida em Chicago, disposta a entregar o bebê para adoção. Mais tarde, esse advogado seria preso e expulso da Ordem por seu envolvimento em práticas ilegais de adoção.
Os bebês do mercado cinzento não eram baratos. Meus pais ainda não eram ricos, mas estavam dispostos a sacrificar tudo. Viviam comendo alimentos simples, usando sapatos velhos e esperando. Esperavam enquanto os vizinhos montavam piscinas infantis. Esperavam enquanto minha mãe comparecia a baby showers, jogando fora os biberões cheios de doces antes de voltar para casa. Até que, finalmente, o advogado ligou e disse para pegarem o próximo voo: sua filha havia nascido. Minha mãe, assistente social na época, jura que estava em casa para atender o telefone porque havia faltado ao trabalho com dores de estômago inexplicáveis – talvez uma espécie de "parto psicológico".
Moramos naquele pequeno apartamento de um quarto por dois anos, até que meu pai começou a prosperar como corretor da bolsa. Com isso, eles puderam comprar uma casa em uma cidade próxima, com um CEP mais desejado e boas escolas particulares. Cresci em um ambiente onde usar aparelho nos dentes era obrigatório, e uma rinoplastia aos dezesseis anos era quase um rito de passagem.
Meus primeiros anos foram uma espécie de história de amor entre meu pai e eu. Ele admirava boas aparências e grandes feitos, e eu me esforçava para ser brilhante, esportiva e musical desde cedo – tudo para impressioná-lo. Quando não conseguia, recorria à trapaça ou fingimento. Meu pai era fascinado por sua pequena seguidora, e para mim, ele era o rei do mundo. Todos os dias, eu esperava no topo das escadas até ouvir o som da porta da garagem, correndo para recebê-lo quando ele entrava, impecável, com seus sapatos lustrosos e ternos Brooks Brothers.
Os meus pais só me revelaram uma única coisa sobre a minha mãe biológica: disseram-me que ela era bailarina. Na minha imaginação, essa mãe era como uma versão em tamanho real da pequena dançarina que girava dentro da minha caixinha de música forrada de cetim. A bailarina de plástico tinha uma leve camada de cabelo ruivo pintado, braços e pernas finos como palitos, e uma graça inabalável. Nunca perdia o equilíbrio, nem precisava baixar os braços. Eu visualizava a minha mãe biológica em uma pose eterna de arabesque, envolta em tule branco e coroada com uma tiara de flocos de neve reluzentes.
Quando eu dava corda à caixinha de música, as primeiras notas de O Lago dos Cisnes ecoavam, rápidas no início, depois diminuindo até se apagarem por completo. Durante esse intervalo perfeito, a pequena bailarina girava na velocidade ideal. Era nesse momento que eu erguia os braços e girava com ela, sincronizadas num instante mágico entre o muito rápido e o muito lento.
Nas minhas memórias dessa época, a figura da minha mãe adotiva é nebulosa, uma presença difusa com unhas longas e vermelhas. Ela era a mão que passava protetor solar no meu nariz, a responsável por pretzels e Twinkies, uma espécie de Sísifo nas tarefas da cozinha. Talvez essa seja a sina das mães nas lembranças: serem relegadas ao ordinário e, assim, tornarem-se invisíveis. Hoje, ao observar as minhas amigas perseguindo os filhos com frascos de protetor solar sem químicos à beira das piscinas, penso nisso.
A verdade é que não era inteiramente assim. Talvez eu tenha me recordado de maneira seletiva, mas parecia ser meu pai quem acudia aos meus terrores noturnos, enxugava meu suor e acariciava minha cabeça até eu voltar a dormir. Era ele quem treinava com entusiasmo as minhas equipas de futebol e softball, quem me levou para assistir O Lago dos Cisnes no Lincoln Center, apresentando-me a um mundo em que as garotas flutuavam como flocos de neve sob a luz dos refletores.
Naquele teatro, ao observar as bailarinas cintilarem em azul e branco, sonhava estar no lugar delas. Na minha imaginação, compreendia o motivo pelo qual minha mãe biológica tinha decidido me dar para adoção. Para ser tão leve, era imprescindível deixar algo para trás. Pensava que talvez perder um bebê fosse o preço da liberdade, a condição necessária para atingir tamanha graça e leveza.
A multidão deixou-me na entrada do Beth Israel. Pode ser que eu não tenha tido uma fada madrinha que me presenteasse com vestidos deslumbrantes, mas, ao menos, tive uma que me ensinou coragem. Desde os dezesseis anos, quando ouvi Easter pela primeira vez e decidi que Patti Smith era o padrão para tudo o que era genuíno e certo, sempre que enfrentava decisões difíceis, perguntava-me: o que Patti Smith faria? Ela era minha régua para medir autenticidade, o farol para a escolha suprema. Quando surgiu a oportunidade de aceitar o emprego no Brunei, pesei minhas opções: deveria ficar ou ir? O que faria Patti Smith? Ela iria. Pegaria o avião rumo a terras exóticas e não olharia para trás. Assim, ao atravessar as portas do hospital, já estava mentalmente sentada no avião, vendo a cidade desaparecer sob mim.
O átrio do hospital era surpreendentemente elegante, mas meus olhos fixavam-se nos detalhes tristes: a alegria artificial das margaridas na loja de presentes, a linha quase imperceptível de sujeira no encontro entre o chão e a parede. Para ser sincera, toda vez que visitava meu pai, mesmo quando ele estava em plena saúde, sentia aquele nó de inquietação no estômago, um peso de ansiedade entre as omoplatas.
Minha relação de afeto com meu pai já tinha terminado aos doze anos, como muitas relações terminam: em decepção. Durante meus anos de escola e além, travávamos batalhas constantes pelo domínio, algumas vezes culminando em violência. Enquanto ele se entregava a excessos, tornando-se um obeso trem de carga de raiva, eu me privava de comida até me transformar no menor alvo possível para as suas críticas. Anos de terapia ensinaram-no a perdoar a si mesmo, embora ele tenha desistido antes de aprender a parar de culpar os outros por sua infelicidade. Como bom pai judeu, sua crença inabalável era de que, quando morresse, eu passaria o resto da vida lamentando minha insensibilidade para com ele. Sua trilha sonora pessoal para esse pensamento era Something Wonderful, de O Rei e Eu.
Ele ligou na véspera de sua cirurgia.
— Oi, querida. Estava sentado no sofá, em frente à lareira, assistindo O Rei e Eu. Quando Lady Thiang começou a cantar Something Wonderful, pensei em mim mesmo.
Meu pai, talvez o único homem no mundo capaz de fazer uma ligação para dizer que uma música o lembrou dele. Eu odiava esses telefonemas absurdos, nos quais ele tentava me impor os sentimentos que desejava que eu tivesse por ele. Something Wonderful é uma balada que expressa amor por um rei imperfeito, mas carismático; uma aposta arriscada para se colocar esperanças. A menos que se possua um reino e se saiba valsar como Yul Brynner, não é prudente confiar no charme eterno para redimir um comportamento execrável. Se, naquele momento crucial, meu pai se identificava com Something Wonderful, eu, por outro lado, teria escolhido There Are Worse Things I Could Do, de Grease.
Havia coisas piores do que aceitar um emprego que exigia partir para o Brunei no dia da operação do meu pai. O sultanato, localizado no Sudeste Asiático, era um lugar de que eu mal ouvira falar até recentemente. A descrição das minhas funções era, no mínimo, nebulosa, mas eu fantasiava que talvez fosse recebida com uma aventura surreal: muito dinheiro e, quem sabe, um chefe que se revelasse o Príncipe Encantado. Era a chance de abandonar minha identidade de boêmia e reinventar-me como uma figura enigmática, talvez amante de um rei ou heroína de um romance de espionagem. Mais realisticamente, eu suspeitava que estava entrando numa carreira que roçava a prostituição internacional. Ainda assim, havia coisas piores que eu poderia fazer.
Preparei meus pais para a ideia de que partiria naquele dia. Disse-lhes que havia conseguido um papel importante em um filme que seria gravado em Singapura e que precisava partir imediatamente. Planejava justificar essa mentira mais tarde, alegando que minha personagem havia sido cortada. Convencia-me de que tais mentiras não eram realmente mentiras, pois imaginava que, de algum modo, concretizaria tudo o que havia inventado. Certo, o filme em Singapura provavelmente nunca existiria, mas meu iminente sucesso ofuscaria essa história, tornando-a irrelevante.
Meus pais, que acreditavam na minha carreira de atriz, aceitaram com resignação a notícia da minha partida. Antes mesmo de eu embarcar no avião, já pareciam conformados com minha ausência. Eu me tornaria a filha aventureira, sempre em busca de experiências exóticas que ninguém no mundo deles seria capaz de compreender. Naquele dia, no Beth Israel, eles começaram a contar os dias para o meu eventual e penitente retorno.
Esperei com minha mãe e minha tia nas cadeiras de plástico da sala de espera, perto da entrada da unidade de cuidados intensivos. Os casacos estavam pendurados nas costas das cadeiras, e a atmosfera era tensa. Minha tia, uma ex-hippie de cabelos revoltos que passara os anos 60 em comunas psicodélicas e sótãos europeus, era, por direito próprio, uma filha pródiga. Geralmente, quando nos encontrávamos, nossas conversas fluíam em maratonas ininterruptas, mas, naquele dia, nenhuma de nós tinha muito a dizer. Em vez disso, focamos no Jeopardy, que passava na televisão pendurada no canto superior da sala.
Minha família sempre fora fã do Jeopardy. A filosofia implícita do programa, onde todas as respostas são formuladas como perguntas, tinha um certo apelo zen que eu particularmente apreciava. Quando estava morrendo de câncer, minha avó, mesmo sob o efeito de morfina, respondia sem dificuldade a praticamente todas as perguntas. Eu e minha tia nos entreolhamos, seguramos as mãos e respondemos em uníssono à pergunta do programa, encontrando ali uma fuga momentânea para o peso daquele dia.
Quem é Thomas Mann?
O que é o canal do Panamá?
Meu irmão Johnny estava, como de costume, ausente. Estava em mais um colégio interno, provavelmente ocupado naquele exato momento com algum esquema para cultivar seus próprios cogumelos mágicos ou tentando escapar do dormitório para pegar carona até o próximo show dos Phish. Minha mãe, por outro lado, estava tranquilamente sentada lendo. Seu cabelo, arrumado com bom gosto em um corte escalado, reluzia sob a luz fluorescente do hospital, assim como seus brincos de diamantes.
Minha mãe tem o dom de brilhar em momentos de crise. Hospitais, funerais, grupos de apoio — são os cenários onde ela mais se destaca. Isso não significa que ela não estivesse preocupada com meu pai; na verdade, preocupação é seu estado padrão. Quando minha avó estava morrendo, foi ela quem me ensinou como devemos nos portar em hospitais: saber onde o gelo é guardado, entender os horários das medicações, fazer amizade com as enfermeiras. "Se você apenas se sentar e esperar que tragam um copo d'água, vai passar sede," ela dizia.
Nós três fomos à cafeteria do hospital e pedimos uma lasanha aguada. Sentamos com má postura, como todas as outras pessoas que pareciam se agrupar ali em torno da comida insossa. De repente, uma salva de risadas cortou o ar, vinda de uma mesa de médicos de jaleco. Para mim, era impensável comer ali todos os dias. O médico do meu pai, Dr. Foster, estava em pé ao lado daquela mesa animada. Era jovem, atraente, com cabelo preto e cheio, e usava óculos de armação de tartaruga. Por um instante, ele olhou para nós, mas sem qualquer sinal de reconhecimento — como se fosse privilégio exclusivo dos médicos ignorar completamente a família de um homem cujos órgãos internos estão prestes a ser manipulados por eles.
Depois da operação, quando finalmente falamos, percebi um ar sutil de galanteio nos modos do Dr. Foster (sim, o timing não poderia ser mais inapropriado). Havia até uma sugestão vaga, mas inegável, de que deveríamos sair para um drink até o fim da semana. Foi ali que imaginei outra versão de mim, uma Jill em um universo paralelo, tomando uma decisão completamente diferente.
Nesse momento alternativo, essa Jill decidiu ficar em Nova York e seguir um rumo de vida completamente distinto. Aceitou o convite do Dr. Foster para tomar um drink e acabou casando-se com ele — um médico charmoso, de pernas torneadas e habilidade no tênis. Essa Jill tornou-se uma esposa tradicional, usando um anel de diamante de dois quilates no dedo, mãe de filhos adoráveis e voluntária exemplar. Passava os fins de semana nos Hamptons, lia revistas de design e culinária gourmet, e fazia pasta caseira que mal comia. Duas semanas por ano eram reservadas para férias nas ilhas do Caribe.
Enquanto isso, aqui estava eu, num hospital, comendo lasanha sem gosto, olhando de longe para o Dr. Foster enquanto ele se afastava, sem realmente saber se o universo paralelo seria melhor — ou apenas mais previsível.
Quem é Thomas Mann?
O que é o Canal do Panamá?
Meu irmão Johnny estava ostensivamente ausente, em mais um colégio interno. Provavelmente, naquele momento exato, estava envolvido em algum esquema para cultivar seus próprios cogumelos mágicos ou planejava escapar do dormitório para pegar carona até o show mais próximo dos Phish. Minha mãe, por sua vez, estava calmamente sentada, lendo. Seu cabelo estava impecavelmente arrumado em um corte elegante em camadas, e seus brincos de diamante brilhavam sob a luz fria e fluorescente do hospital.
Minha mãe sempre se destaca em momentos de crise: em hospitais, funerais, grupos de apoio. É o tipo de pessoa cuja presença você quer por perto quando tudo parece desmoronar. Isso não quer dizer que ela não estivesse preocupada com meu pai; estar preocupada é, de certa forma, seu estado padrão. Quando minha avó estava morrendo, minha mãe me ensinou que, em hospitais, devemos estar à vontade: saber onde fica o gelo, como controlar os horários dos medicamentos e fazer amizade com as enfermeiras. Se ficarmos apenas esperando que alguém nos traga um copo d'água, corremos um grande risco de morrer de sede.
As três fomos à cafeteria do hospital para comer uma lasanha insossa e aguada. Sentamos com má postura, como todas as outras pessoas ali, reunidas ao redor de pratos mornos. O silêncio do ambiente foi interrompido por uma explosão de risadas vindas de uma mesa de médicos em seus jalecos. Eu não conseguia imaginar como seria comer ali todos os dias. O médico do meu pai, Dr. Foster, estava de pé ao lado da mesa dos médicos. Ele era jovem, atraente, com cabelos negros bem fartos e usava óculos de armação de tartaruga. Ele lançou um olhar pela sala e pousou os olhos sobre nós por um breve instante, sem qualquer sinal de reconhecimento. É privilégio exclusivo dos médicos dividir o mesmo espaço que a família de um homem cujos órgãos internos estão prestes a manipular e sequer acenar com a cabeça em solidariedade.
Depois, o Dr. Foster se afastou. Quando falamos após a cirurgia, percebi um tom sutilmente galanteador em sua postura. (Sim, o momento não poderia ser mais impróprio.) Houve até uma sugestão vaga, mas inconfundível, de que poderíamos tomar um drink juntos mais para o final da semana. Em algum lugar, imaginei, uma versão paralela de mim poderia ter feito outra escolha, apenas se inclinando um centímetro para a esquerda e escolhendo um caminho completamente diferente.
Nessa realidade alternativa, uma "Jill" decidiu ficar em Nova York e seguiu por outro rumo, não em busca de fama e fortuna, mas abraçando os valores com os quais foi criada. Aceitou o convite do Dr. Foster para um drink, casou-se com o médico de pernas torneadas e passou a jogar tênis regularmente. Exibia um anel de diamante de dois quilates no dedo, encontrou realização nos filhos e no trabalho voluntário. Lia revistas de design e culinária gourmet, fazia massas frescas que mal provava e passava os fins de semana nos Hamptons, reservando duas semanas anuais para férias nas Caraíbas.
Minha mãe irradiava a calma de uma mártir a caminho da fogueira. Ela parecia ter se conformado com o destino que lhe fora imposto. Nunca a vi tentar fugir de seu casamento com um homem autoritário que a humilhava constantemente. Perguntava-me se ela teria vidas paralelas, se dúvidas surgiam em cada encruzilhada de sua existência ou se sentia que algo maior guiava a direção de sua vida, a fazendo seguir o caminho que estava predestinado, vivendo exatamente como vivia.
Quando voltamos do almoço, um pedaço de queijo se solidificando em meu estômago, meu pai começava a despertar da anestesia. Uma enfermeira nos informou que apenas uma pessoa poderia entrar de cada vez na unidade de cuidados intensivos, então minha mãe foi a primeira. Retornou cerca de quinze minutos depois, com uma expressão impassível, dizendo apenas que eu deveria entrar em seguida, pois ele havia pedido.
Meu pai estava entre a consciência e a inconsciência. Centenas de tubos e fios saíam e entravam dele. Ele havia perdido mais de vinte e cinco quilos, e sua pele não acompanhara a rápida transformação de seu corpo. Estava flácido, pendendo como tecido em excesso. Parecia frágil, como uma sombra de si mesmo.
Tenho uma foto minha com meu pai quando eu ainda era bebê. Ele está deitado na cama, e eu, dormindo sobre sua barriga cheia. Para mim, ele era enorme, uma montanha. Tenho a sensação de que lembro daquele momento, embora saiba que seja uma ilusão de memória, uma mistura de fotografias com realidade, pois eu era apenas um bebê. Mas poderia jurar que lembro da sensação de descansar a cabeça tão perto de seu coração.
Seus olhos azuis, avermelhados e injetados de sangue, vasculhavam o quarto de maneira frenética.
"Isso dói", disse ele, com uma voz fraca e dolorida.
"Agora vai melhorar", tentei consolá-lo.
Eu não sabia que a dor era tão intensa.
Permaneci ao lado dele, segurando sua mão, ciente dos meus dentes na boca, dos meus pés dentro dos sapatos e do relógio no pulso, que marcava dez minutos depois da hora em que eu deveria partir para pegar o avião. Falei sobre o meu novo e fascinante papel no filme, e ele parecia se animar com a notícia.
Ele comentou, olhando para mim, como quem notava algo em mim.
Poderia simplesmente não ter ido ao aeroporto, poderia ter ficado para a bebida com o Dr. Foster, mas não o faria. Estava incerta sobre o meu destino, mas sabia com certeza que não passava por aquele caminho. Disse ao meu pai que ligaria de Singapura todos os dias. Depois, o beijei na face e fui embora.
Enquanto eu me afastava, meu pai murmurou baixinho, com um tom cheio de carinho, para eu seguir minha estrela e deixar que ela me levasse às alturas.
Com estadias de uma noite em Los Angeles e Singapura, passei três dias em viagem para o Brunei. As longas horas de voo proporcionaram-me uma oportunidade para refletir.
Atualmente, a minha vida adquiriu um ritmo mais lento e parece que o tempo vai passando e deixando apenas marcas subtis na minha vida: o ligeiro acentuar das rugas em redor da minha boca, o desfazer de uma posição de ioga, uma amizade que é brutalmente testada, talvez, ou o nascimento de uma nova. Lanço-me em intermináveis tentativas para quebrar maus hábitos e para adquirir novos e mais saudáveis. Geralmente fracasso em ambas, mas sem grandes prejuízos. Já não. Por vezes, compro um bilhete de avião. Há sempre um nascimento, uma morte, uma celebração, uma tragédia. Mas quando me sentei nesse avião para Singapura, tinha muito sobre que refletir e ainda mais que esperar. Na altura, o camião desenfreado que era a minha vida galgava a linha divisória, mudando de direção de cinco em cinco minutos.
A ouvir um CD dos Talking Heads no meu leitor portátil. And you may ask yourself, well… how did I get here?
Podem fazer a mesma pergunta. Estão a ver? Que está uma rapariga simpática a fazer a caminho de um harém como este? Permitam-me que volte alguns passos atrás.
Como lá cheguei? Tudo começou com uma corrida impetuosa na praia, já muito depois da meia-noite, numa noite gélida de novembro em East Hampton. Larguei numa corrida a toda a velocidade pelas dunas iluminadas pelos projetores, com o terror estampado na cara. Sob as minhas Reebok, o solo cedia e abrandava-me o passo como se eu estivesse a correr num sonho. A areia à minha frente estava semeada de sombras alongadas. A única coisa que o realizador me tinha mandado fazer, antes de gritar «ação», fora atingir três marcas ao longo da minha trajetória, cada uma delas assinalada por um saco de areia pouco visível. Eu estava com um traje de cheerleader amarelo e azul fácil de arrancar pois prendia com Velcro dos lados, e o meu cabelo castanho estava preso em apertados totós, atados com laços de cetim amarelo. O ar salgado arranhava-me a traqueia e cobria-me os braços e as pernas nus de pele de galinha. Tinha feito dezoito anos três meses antes; podia mesmo ter sido uma cheerleader.
Atingi o primeiro saco de areia num ângulo esquisito e torci o tornozelo. De acordo com o guião, uma mão espectral emergiu da escuridão e arrancou-me a blusa. Soltei o meu melhor grito à Janet Leigh e desatei a correr, agora de peito nu, em direção à marca seguinte, sentindo a perna percorrida de dardos de dor.
Estava ali. Existia na realidade. Era a Patti Smith de totós e estava a gritar a plenos pulmões diante de uma câmara – diante de uma câmara finalmente. Que interessava que fosse um filme foleiro sobre vampiros para lançamento em vídeo na Flórida? Era um filme. Era um começo. Era uma pedra fugaz na estrada dos sonhos que levaria a tudo o que eu queria ser: uma estrela cintilante no palco e no ecrã. O meu plano era ser tão absoluta e inquestionavelmente amada que nunca mais ficaria suspensa nas órbitas exteriores do nada.
Este filme, este primeiríssimo degrau da minha escada para o sucesso, chamava-se Valerie. Valerie era sobre uma aluna do liceu tão obcecada com vampiros que magicamente se transformava num e passava então a aterrorizar a sua escola. Duas semanas antes, tinha respondido a um anúncio na Back Stage que me conduziu ao tipo de moradia citadina de tijolo em Newark onde moram velhas senhoras polacas. Esta audição era diferente da maior parte das audições a que tinha ido, em que acabava num vago estúdio de casting perto do centro com um grupo de outras raparigas viradas para a parede a lerem silenciosamente os excertos do guião, movendo os lábios e erguendo e baixando as sobrancelhas.
Eu conhecia mais ou menos Newark. A minha família é uma dessas antigas famílias judaicas de Newark em que os octogenários são requestados para entrevistas por etno-historiadores. O meu trisavô e os irmãos chegaram de barco de uma shtetl na Polónia e, banhados em tons de sépia, começaram com uma carroça de fruta e abriram uma mercearia que veio a transformar-se numa cadeia de mercearias. Começaram por entregar jornais a troco de canetas e acabaram a passar receitas. Eram médicos e dentistas e empresários e magnatas do setor imobiliário. Contribuíram para a fundação da sinagoga mais antiga de Newark, a mesma onde eu e o meu irmão fizemos o bat e o bar mitzvah.
Perguntem ao meu pai que ele explica tudo: a nossa família ajudou a construir Newark. Adoramos Newark. Muito depois de ele sair de casa, os pais dele foram, durante anos, a última família branca a viver no seu quarteirão. Só mudaram de casa quando o meu avô se reformou e ele e a minha avó eram demasiado velhos para olharem pela casa sozinhos. Embora o meu pai viva agora num subúrbio endinheirado a cerca de vinte minutos, é o primeiro a dizer que não tem complexos de grandeza; não passa do mesmo catraio de Newark. O meu pai é um homem sentimental e, quando eu era pequena, costumava levar-me a passear no seu Cordoba branco e indicar a velha casa na Lyons Avenue, a Escola Secundária de Weequahic, o cemitério judaico. Falava tanto sobre todas estas coisas que os passeios Newark nos eram familiares apesar de nunca lá termos vivido nem sequer sairmos do carro.
Assim, senti que quase reconhecia a moradia citadina quando cheguei à morada escrita numa folha de papel na minha carteira. Bati à porta e o untuoso realizador do filme, a quem não faltava um rabo de cavalo fino e jeans de cintura alta, conduziu-me a uma sala de estar onde todas as superfícies estavam cobertas de uma teia de napperons rendados e todas as peças de mobiliário estavam protegidas por plástico; provavelmente a casa da mãe dele. A mesa de apoio fora afastada para o lado da sala e, em seu lugar, estava um tripé com uma câmara vídeo do tamanho de uma torradeira.
Pus-me à frente da câmara e fiz a minha audição, que consistia inteiramente em tirar a blusa e gritar. O realizador e o assistente franziram as testas e tomaram apontamentos numa prancheta enquanto se mexiam em cima das capas do sofá rangente. Dois dias mais tarde, chamaram-me para me informar que eu fora escolhida para Vítima Um. O realizador disse-me também que o Butch Patrick, o tipo que interpretara Eddie Munster, era primo dele e que, portanto, o projeto apresentava imensas potencialidades.
Costuma dizer-se que não existem pequenos papéis, mas apenas pequenos atores, e, como eu ainda não tinha descoberto que este aforismo não é verdadeiro, aceitei o trabalho.
Dirigi-me para a segunda marca, onde uma mão entrou no plano e me arrancou a saia da cintura. Este grito foi menos potente, com menos fôlego. Corri a última etapa do percurso só de cuecas, sapatilhas e soquetes. Quando cheguei ao último saco de areia, a Maria, a atriz que interpretava o papel de Valerie, surgiu à minha frente e bloqueou-me a passagem.
Grito
Corta.
Maria era claramente anorética, uma loura com um ar torturado. Os seus olhos arroxeados eram ensombrados por círculos arroxeados que nem a maquilhagem branca e densa cobria completamente. Vestida com um roupão em mau estado e recortada contra as luzes brilhantes do décor, parecia uma extraterrestre com o seu corpo de sílfide a sustentar estranhamente um crânio que parecia enorme em comparação. A que propósito é que esta rapariga era a vedeta enquanto eu era a Vítima Um?
Enquanto esperávamos que preparassem o plano seguinte, eu e a Maria agasalhámo-nos com um edredão surripiado numa casa de praia próxima que pertencia aos pais não sei de quem. Chegadas uma à outra para nos aquecermos, senti contra mim as arestas angulosas dos ossos ilíacos dela, desprovida como era de qualquer camada de proteção contra o mundo. A equipa azafamava-se à nossa volta, montando as luzes e preparando a nossa próxima cena conjunta. Era a minha cena final. O meu Grande Momento.
Realizador veio falar connosco enquanto o diretor de fotografia preparava a câmara para a filmagem.
Dirigiu-se à Maria em primeiro lugar.
Esta é a tua primeira morte. Finalmente cedeste à sede de sangue contra a qual vens lutando durante todo este tempo. É hipnótico. É orgástico… o poder quando a dominas. Saboreia-o. Não te precipites. Sobretudo na mordida.
Virou-se para mim e disse simplesmente: – Dá-lhe luta.
Uma rapariga apagada da área de adereços, com um colete de pelo, um gorro e luvas de borracha até aos cotovelos, preparou uma mistura de sangue falso num balde. No primeiro plano, a Maria tinha de arrancar a última e insubstancial barreira que separava o meu corpo da noite – o par de cuecas que seria sacrificado para a ocasião – e de me atirar em seguida ao chão. O plano seguinte era a matança homoerótica, na qual eu sucumbiria à vampira e acabaria submersa em sangue falso. A aderecista frisou a necessidade de fazer a cena num take porque não haveria maneira de me voltar a limpar.
Cena da luta foi lastimosa. A Maria mal tinha força nas mãos para me agarrar nos pulsos. Eu tenho a forma de uma réplica viva das voluptuosas raparigas de banda desenhada de R. Crumb, com grandes traseiros, coxas robustas e redondas, cinturas delgadas e seios arrebitados copa B, o que equivale a dizer que podia ter reduzido os frágeis ossos da Maria a uma pilha de galhos com um empurrão. Não estava disposta a deixar que a fragilidade dela estragasse o meu momento. Assim, entrelacei os dedos nos dela e sacudi-a como se ela fosse um fantoche, tentando dar a impressão de que estava a lutar pela minha vida de cheerleader. Depois, lancei-me para trás e puxeia para baixo, para cima de mim. Ela pareceu abalada.
Grito.
Corta.
Plano seguinte era o plano sangrento. A aderecista tinha posto um avental de borracha preto, concluindo a sua toilette de autêntica carniceira. O resto da equipa enterrou umas tubagens transparentes na areia de maneira a surgirem atrás do meu pescoço. Enquanto se atarefavam à minha volta, deitei-me na areia, fechei os olhos e tentei não hiperventilar. Refugiei-me em mim mesma e fiquei estranhamente ensonada, sentindo o tornozelo torcido quente e palpitante. Pensei se estaria a começar a morrer de frio. Vozes atrás de mim indicavam a sua preocupação de que o sangue na tubagem não fluísse livremente já que começara a espessar e a formar um bloco de gelo xaroposo. O supervisor do guião deu uma cotovelada ao realizador e apontou para a minha figura prostrada.
Ele entrou em ação. – Muito bem. Vamos à matança. Tem de ser agora; estamos a perder a nossa Vítima. Toda a gente a postos.
Maria posicionou-se sobre mim, os seus olhos injetados de sangue e encovados denotando profunda exaustão e fome. Certificou-se de que os dentes estavam bem presos. A rapariga carniceira aproximou-se com um copo de plástico e encheu-me a boca de uma mixórdia repugnante que eu devia cuspir no momento em que me rendesse.
Silêncio.
Estamos a filmar.
Ação.
A Maria arregalou os olhos, na sua melhor expressão à Bela Lugosi, e preparouse para um ataque lento e dramático. Eu não podia contorcer-me muito por causa da tubagem do sangue precariamente instalada e assim procurei transmitir o pânico na minha expressão. Considerei que era o tipo de desafio que distinguia os amadores dos profissionais; não votava aos amadores senão desdém. Soltei um derradeiro e absolutamente genuíno grito quando a Maria se baixou para a mordida e um rio do que parecia ser ranho congelado jorrou do tubo como um gêiser e submergiu-nos a ambas. Arfei em mortais convulsões enquanto ela erguia o rosto para a lua, os olhos alucinados com a chacina. Finalmente imobilizei-me e deixei cair a cabeça para o lado, o sangue escorrendo-me pelo canto da boca flácida e os olhos fixos à minha frente.
Corta.
A Vítima Um está feita. Maria, vai-te limpar para o plano seguinte. As cerca de cinco pessoas presentes rebentaram numa salva de palmas pouco entusiasta e a rapariga do açougue atiroume uma toalha. Eu aproveitei para me pisgar e encaminhei-me a mancar o mais depressa que podia para a casa. Um assistente de produção estava a guardar a entrada para o alpendre.
Chuveiro exterior – disse ele.
Estou nas últimas.
Não estou a brincar.
Descalcei as meias e os sapatos, agora cor-de-rosa, e encaminhei-me sombriamente para o que era de certeza o auge da tortura da noite. Descobri que em East Hampton, ao contrário da praia de Jersey, os chuveiros exteriores têm água quente e cabeças de chuveiro do tamanho de discos voadores. Sobre uma base de betão, desprendi o cabelo empastado dos totós, deixando a água quente lavar o lodo e aquecer-me o corpo, e tudo o que restava das últimas horas era o céu estrelado de Long Island e o oceano negro e revoltoso à distância. Procurei libertar-me da inquietante apreensão que sentia no peito. Não tinham passado de uns momentos divertidos e macabros, certo? A próxima audição seria a sério. O próximo papel que me fosse oferecido seria a sério.
Quatro raparigas peitudas estavam sentadas em divãs cobertos com toalhas, numa sala do andar de baixo da casa. A caracterizadora tentou aplicar-lhes a maquilhagem corporal uniformemente com uma esponja, mas a base branca escapava ao seu controlo, demasiado espessa e seca em certos pontos e demasiado fina e fluida noutros. As raparigas estavam a ensaiar o texto umas com as outras, preparando-se para as cenas em que interpretavam as esposas vampiras que acolhiam a Valerie no seu círculo maldito.
Vesti o fato de treino, penteei o cabelo molhado para trás e instalei-me, preparada para esperar que o resto da longa noite passasse. A sala era toda em cerejeira, almofadas de chintz e largas riscas azul-marinhas. Uma mesa no canto oferecia um litro de Diet Coke, uma embalagem de água mineral, um monte de sanduíches empapadas e alguns Cheetos. Contornei este lastimoso cenário e descobri o bar. Depois comecei a passear-me por ali com o Jameson como se fosse a senhora da casa, armada em afável anfitriã e regando os refrigerantes de toda a gente com whisky.
Whisky animou a festa. Com a adrenalina em alta, conversámos sobre clubes de striptease e namorados, cientologia e colonterapia, professores de Interpretação e restaurantes da baixa. Ponderámos essa grande questão feminina: Por que razão as vampiras se chamam «esposas vampiras» quando os vampiros não se chamam «maridos vampiros»? Apesar desta injustiça para com o nosso sexo, as esposas vampiras acabaram por ir filmar as suas cenas e eu enrosquei-me numa cadeira e adormeci, agarrada a uma almofada com um cãozinho bordado a meioponto.
Acordei quando as esposas vampiras apareceram, frescas do duche e embrulhadas em toalhas, com vagas manchas brancas ainda agarradas ao cabelo. O céu tinha começado a clarear com a pálida alvorada e só a Maria continuava no exterior a rodar as últimas cenas. O assistente de realização trouxe algum do material filmado ao início da noite e ligou uma segunda câmara à televisão. Juntámo-nos para assistir. Fiquei excitada quando me vi na imagem. Considerei que me tinha saído lindamente dadas as limitações evidentes.
Vimos o que me pareceram centenas de cenas antes da minha e eram todas intragáveis. Não me devia ter sentido surpreendida quando finalmente apareci no ecrã, a iluminação era tão má que era quase impossível distinguir-me. Não passava de uma mancha de fita amarela no cabelo e um par de mamas brancas saltitantes no escuro. O grande plano do meu estertor de morte estava desfocado e era óbvio que seria eliminado.
Dirigi-me ao alpendre para assistir ao nascer do sol, decidindo que não precisava de ver mais. O filme nem num estilo irónico tinha qualquer valia. Era apenas mais uma noite mal dormida e outro cheque «diferido» que nunca mais chegaria. Pelo menos, tinha a história. No final de todas estas noites surrealistas e inúteis, havia sempre a história.
Uma das esposas vampiras, uma rapariga chamada Taylor que era a cara chapada da Ellen Barkin, seguiu-me até lá fora. Envolvemo-nos as duas em sobretudos e edredões e apertámo-nos uma contra a outra no baloiço do alpendre. A Taylor estava com uma camisola de gola alta J. Crew e parecia deslocada entre o pessoal da pornografia de baixo orçamento que constituía o resto de elenco de Valerie. Tinha cabelo espesso e louro veneziano e a cana do nariz sardento exibia um bronzeado desmaiado.
Conversámos enquanto víamos o sol sobre o oceano a passar pelas mais pálidas tonalidades de limão e rosa-pétala e azul-bebé
Então que fazes quando não estás com as maminhas ensanguentadas ao frio a troco de um pagamento miserável, joia?
Taylor falava com um leve sotaque sulista, o que lhe permitia tratar impunemente as pessoas por «joia».
Disse-lhe que trabalhava como estagiária no The Wooster Group, uma lendária companhia de teatro no centro da cidade. Passava longos dias na Garagem do Espetáculo, na esquina da Wooster e Grand, onde arquivava documentos para o Spalding Gray e ia buscar lattes para o Willem Dafoe. Assistia aos ensaios enquanto a encenadora Elizabeth LeCompte, como uma espécie de xamã pósmoderna, desconstruía, reconstruía e dava corpo à obra-prima iconoclasta do momento.
Quando a Kate Valk ou um dos outros veteranos superchiques do The Wooster Group se apiedava dos seus estagiários prediletos e nos oferecia uma bebida no Lucky Strike, na esquina, o vinho faziame arder os cortes feitos pelo papel nos cantos da boca. Mas o tempo que passava na Garagem do Espetáculo era o melhor. Os meus amigos estagiários ali iam ser os atores principais na nova vaga de teatro experimental nova-iorquino; estávamos convencidos disso.
Às tantas é a melhor companhia de teatro do mundo e eu ando para ali a lamber envelopes de angariação de fundos – disse eu à Taylor.
E o que fazes para ganhar dinheiro quando não és uma escrava das artes?
Quando me faziam esta pergunta, normalmente mentia, mas, por qualquer razão, contei a verdade à Taylor. Disselhe que dividia o meu tempo entre um sórdido bar de topless, mas na moda, da Canal Street, chamado Baby Doll, e um ainda mais sórdido e completamente fora de moda peep-show, na Times Square, chamado Peepland.
Comecei a dançar quando abandonei a Escola de Arte Tisch da Universidade de Nova Iorque. Tinha sido admitida aos dezasseis anos, através de um programa de admissão precoce, e os meus pais tinhamme recambiado para uma residência universitária doze andares acima do Washington Square Park, ainda eu não tinha tirado a carta de condução. Quando deixei a escola seis meses mais tarde, indiquei a minha preferência pela lendária escola da vida, mas o meu pai não foi na cantiga. Diante de camarões e cogumelos, no Jane Street Seafood, cortou-me prontamente o cordão umbilical das finanças.
Há seis meses dizias: Não preciso do estou pronta para a universidade – disse ele, as suas bochechas transformando-se num balão escarlate de raiva. – Agora é: Não preciso da universidade, estou pronta para a vida. A vida custa dinheiro.
A universidade também.
Tens sempre resposta pronta. Achas que tem graça, o caminho que levas? Não te dou nada. Vê como te desenrascas e depois veremos se mudas de ideias a respeito da universidade.
Ele tinha razão. A vida custava dinheiro. E a vida em Nova Iorque custa dinheiro e muito, consideravelmente mais do que eu ganhava como desastrosa empregada de mesa no Red Lion na Bleecker Street. Uma das outras estagiárias no The Wooster Group trabalhava no Kit Kat Club na esquina da Fifty-second e da Broadway e convenceu-me de que seriam muito mais tolerantes lá para com a minha falta de talentos naturais para o serviço de mesa. Um dia, acompanhei-a ao trabalho e passei cerca de quarenta minutos a servir à mesa antes de arrancar os trapos e saltar para o palco com uma tanguinha emprestada.
Para aqueles que não tiraram financeiramente partido da sua sexualidade, aqueles de nós que inspiraram muitas vezes um espectro extremo de emoções: por que razão nos despiríamos por dinheiro? O que nos leva a dar esse primeiro mergulho? O que torna uma rapariga com problemas de dinheiro numa stripper e outra numa empregada de mesa e outra numa estudante de Medicina? Convém ligar os pontos. Querem certamente garantias de que não será a vossa filha ali no palco de perna enrolada no poste. Uma relação de merda com o meu pai, a autoestima pelas ruas da amargura, uma ânsia de aventura astrologicamente inevitável, sonhos de estrelato, uma história de depressão e ansiedade, uma tendência para consumir drogas – ponham tudo no caldeirão e fervam e verão emergir a trabalhadora sexual ideal, a cintilar e a pingar e intacta.
Olhem só para a lista de requisitos. Não se preocupem, não é a vossa menina. Ela nunca virá a ser como eu.
Dançar no Peepland e no Baby Doll permitia-me ganhar o suficiente para viver à custa de refogados vegetarianos, fazer noitadas no Max Fish e ter um apartamento dividido em Lower East Side, mas não se podia dizer que nadasse em champanhe.
Trabalhas de mais e ganhas mal e porcamente e vais dar cabo dos joelhos – disse-me a Taylor. – Já fizeste dezoito anos?
Tinha acabado de fazer.
Ótimo, porque a Diane verifica. Não lhe podes entregar identificação falsa como se ela fosse uma segurança meio emborrachada numa discoteca.
Dizia «Crown Club» em letras douradas em relevo, com uma pequena coroa por cima do «o» e um número de telefone por baixo. Tirou uma caneta da carteira e escreveu também o número dela.
A Diane dirige a agência de acompanhantes para a qual trabalho. É a melhor em Nova Iorque. Andas a vender-te ao desbarato. Se vieres trabalhar comigo, a tua vida muda num abrir e fechar de olhos.
Uma agência de acompanhantes. Parecia simples e cheio de estilo. Imaginei que a Diane seria uma mulher elegante de fato creme, sapatos práticos de salto e brincos de diamante. Arvoraria um ar perspicaz e distante mas teria um lado maternal, como a Candice Bergen em Mayflower Madam. Seria alguém digno de admiração, alguém que me poderia ajudar. Eu andaria menos cansada, teria mais tempo para me dedicar à minha carreira de atriz.
Taylor pôs o braço à minha volta. Éramos novas amigas, juntinhas contra o frio, contemplando a extensão sem nuvens do céu. O sol tinha nascido; a equipa guardara o equipamento e estava a carregá-lo em carrinhas. Os membros do elenco foram saindo um a um para o alpendre à espera de boleias para a cidade.
A história da Mayflower Madam era uma fantasia agradável, mas eu sabia que as probabilidades de ligar à Diane eram remotas. Fazer trabalho de acompanhante era ir longe de mais. Mas meti na mesma hora o cartão ao bolso, para o caso de mudar de ideias.
No Dia de Ação de Graças de 1991, tirei da carteira o cartão que a Taylor me dera e marquei o número. Quando uma rapariga dá por si a fazer coisas que nunca imaginou, muitas vezes acontece por fases. Pisa o primeiro risco e avança para o risco seguinte. Um dia, talvez se ache só. Ou sem dinheiro, ou deprimida ou simplesmente curiosa. Ou sentada no sofá em casa dos pais, a sufocar lentamente, uma almofada invisível de recordações pressionada contra a cara. E já se é esse tipo de rapariga; já se percorreu o longo caminho até aqui – que mal faz mais um telefonema?
Eu e o meu namorado, o Sean, estávamos a passar o fim de semana com a minha família. Tinha-me debatido com a decisão de levá-lo ou não, mas o meu desejo de o ter ao meu lado superou a hesitação de levar alguém para casa dos meus pais. Achava que podia estar apaixonada pelo Sean, se bem que o sentido que eu dava a este facto resultasse da minha convicção de que o amor romântico era uma conspiração usada pelo poder capitalista como uma ferramenta de marketing e pela comunicação social como um soporífero tipo boa-noite Cinderela.
Antes de conhecer o Sean, tinha-me envolvido em sucessivos encontros amorosos, paixonetas, namorados (e uma ou duas namoradas), nunca me deixando perturbar pela rápida extinção da chama, nunca esperando que a relação durasse. Quando o conheci, ainda tinha dezassete anos. Já era stripper há seis meses e nunca tivera um namorado sério, nem sequer no liceu. Foi então que o Sean apareceu na Garagem do Espetáculo para visitar uns amigos.
O Sean era magro, com olhar lânguido e cabelo escuro espesso pelos ombros e dedos fabulosos de músico. Era um artista pobre com um palmarés distinto, um ator e guitarrista talentoso que partilhava um apartamento bera de dois quartos na Rivington Street, do lado oposto à Streit’s Matzo Factory. Eu partilhava um apartamento idêntico de um quarto ao dobrar da esquina.
Passámos o nosso primeiro encontro a comer crepes chineses e a beber cerveja no meu telhado, com as nuvens sobre nós pairando pesadas e baixas. Um súbito trovão fez-nos levantar de um salto, sobressaltados, e desencadeou uma série de alarmes de automóveis no parque de estacionamento em baixo. Gordas gotas de chuva começaram a bater no telhado de alcatrão e nós deixámo-nos estar ali até ficarmos encharcados; ele inclinou-se para me prender a cabeça nas mãos e me beijar – beijos demorados com sabor a cerveja – enquanto os restos da nossa comida ficavam ensopados. Foi piroso. Foi fantástico. Era o melhor encontro que alguma vez tivera e ele era de longe o melhor gajo que já conhecera.
O Sean não se importava que eu fizesse striptease. Até chegou a ir ver-me várias vezes. Gostava dos sapatos e achava aquilo tudo um tanto emocionante. Ouvia regularmente com interesse relatos das minhas aventuras felinianas, apesar de alimentar secretamente uma ou outra dúvida.
Comíamos as nossas refeições no El Sombrero ou na pizaria Two Boots e bebíamos até altas horas no Max Fish com amigos de várias bandas e projetos teatrais. Comprávamos cocaína de má qualidade na Avenue B e inalávamo-la na capa no LP dele Houses of the Holy, enquanto bebíamos gin tónico por chávenas de café e falávamos toda a noite de arte, de níveis de desconexão, da comunicação social, do nosso desejo de uma «verdadeira» experiência. Ao fim de algum tempo, concluí que estava apaixonada, mas fiz figas quando o disse, não fosse estar enganada.
Eu e o Sean chegámos a casa dos meus pais no mesmo autocarro em que eu tinha andado um milhar de vezes, durante o liceu, quando viajava para aulas de Interpretação ou de Dança ou espetáculos rock na cidade, sobre os quais mentira dizendo que ia dormir em casa de uma amiga. As árvores já tinham largado quase todas as folhas mas o relvado ainda estava brilhante, de um verde de veneno. A casa cinzenta de dois andares dos anos setenta era uma declaração sem conteúdo, um orgulhoso monumento ao status quo. Todas as casas na rua eram uma variação sobre o mesmo tema, uma configuração diferente da mesma construção de Legos.
Os meus pais arrebataram-nos à porta com ávidos abraços. O meu pai estava mais magro do que nunca, impossibilitado de comer graças à sua hérnia do hiato. Quando a sua face aflorou a minha, estava húmida de suor frio. Estava visivelmente doente, o que me deixou abalada. Que faria eu se acontecesse alguma coisa ao meu pai? Ele sempre fora como um rochedo, uma dessas pessoas que acham que os médicos são para as pessoas fracas e os dentistas uma perda de tempo.
Deu-me um apalpão no rabo quando eu ia a subir as escadas e eu tropecei, amparando a queda com as mãos.
Ei, gorducha. Pelos vistos, decidiste começar a comer outra vez.
Ao meu namorado disse: – Não é uma rapariga delicada? Costumava pôr-se por aí a dançar e a gente chamava-lhe Katrinka.
Poderosa Katrinka é uma personagem de uma série de filmes mudos. Era interpretada pela Wilna Hervey, uma atriz de comédia que media quase um metro e noventa e pesava cento e trinta quilos. Era a alcunha que o meu pai me dava quando achava que eu estava a ser uma cretina. O meu pai era uma pedra. Uma pedra amarrada ao meu tornozelo quando eu caía borda fora. Deixei imediatamente de me preocupar com a sua saúde para passar a esperar que ele morresse à fome, ali mesmo, durante o jantar de Ação de Graças, com um lauto banquete à sua frente.
Escapei aos preparativos de Ação de Graças que se seguiram e fui descansar para a sala do andar de baixo. Sentei-me no sofá modular, por baixo de uma fotografia de família recente que permitira relutantemente que tirassem. Mostra a minha família rigidamente em pé numa secção de relva no quintal das traseiras. O deck branco da piscina paira atrás de nós como um disco voador e a luz áspera do sol achata-nos, transformando-nos em blocos bidimensionais de cor. Pernas incongruentemente finas sustentam o tronco porcino do meu pai. Ele está a semicerrar os olhos na direção do sol, os pés de galinha em redor dos seus olhos formando uma expressão de descontentamento.
A pele da minha mãe está brilhante e esticada, com um ar ainda jovem, mas a sua postura sugere que alguém acaba de lhe dar uma pontada no esterno. O meu irmão, Johnny, exibe uma cabeleira de górgona de rastas mal cuidadas e eu estou periclitante ao seu lado com uma inócua T-shirt branca e um sorriso artificial, o mesmo sorriso que surgia sempre que estava em casa dos meus pais, um reflexo involuntário tão certo como um tique numa perna depois de uma pancada com um martelo de borracha na rótula.
Sean estava com o Johnny no quarto dele a ouvir os Pink Floyd. Puseram as cabeças de fora da janela e o Johnny passou ao Sean o charro que estava normalmente colado ao seu lábio inferior.
Os meus pais adotaram o Johnny quando eu tinha quatro anos. Esperei pela chegada dele em bicos de pés, abanando os meus totós por cima da balaustrada de ferro branca que corria a toda a largura do cimo das escadas. A minha mãe subiu as escadas com um bebé ao colo, que parecia um chouriço, embrulhado numa manta, com uma cara encorrilhada e cabelo preto em ondas que lembravam a cobertura glaceada de um queque. Tomei-me imediatamente de amores por aquela criaturinha quente. Ele era para mim como um boneco com vida, com o seu cheiro de bebé, os bracinhos rechonchudos e macios e os grandes olhos azuis. Adorava embalá-lo no sofá durante o que pareciam horas, fazer-lhe cócegas nas orelhas e beijar o seu nariz em miniatura.
Johnny não era um bebé fácil. Não era esperto, engraçado nem desejoso de agradar como eu. Quer isto fosse ou não inicialmente verdade, é difícil uma pessoa afastar-se de um tal guião a partir do momento em que ele é escrito para ela. O Johnny, diz o meu pai, teve problemas desde o princípio, a implicação sendo que a culpa por aquilo em que se transformou não é dele: os episódios obsessivos-compulsivos, as trips de ácido destrutivas, o extremismo religioso.
Durante os primeiros anos de vida, o Johnny andava constantemente agarrado às pernas da minha mãe enquanto eu dormia com as T-shirts da equipa de softball da empresa do meu pai. Tínhamos tomado partido. Eu adorava o Johnny mas adorava ainda mais ser a predileta do meu pai.
Hoje em dia, o Johnny é hassídico e vive em Jerusalém. Passa o tempo a recitar as liturgias na sinagoga e ocasionalmente trabalha como apanhador de azeitonas migrante ou vendedor de tónicos à base de plantas biológicas. Sonha com um pequeno terreno, um rebanho de cabras e algumas oliveiras suas. No seu mundo, os homens e as mulheres comem em salas separadas. É um mundo com uma lógica própria, mas onde eu não tenho exatamente lugar. Ainda falamos ao telefone de tempos a tempos. Quando me lembro, mando presentes de aniversário ao filho dele.
Agrada-me culpar o Johnny da distância entre nós. É ele que usa o chapéu preto de abas largas e defende o sistema de fé arcaico, não sou eu. Mas a verdade é que, quando as coisas deram para o torto, fugi de casa e deixei-o. Prometi que voltava para o buscar e nunca voltei. Nesse Dia de Ação de Graças, fui para o andar de baixo, onde me sentei sozinha no sofá, e não lhe dei ouvidos quando ele tentou dizer-me que o meu pai lhe tinha batido na cabeça com o telefone na noite da véspera.
Minha mãe andava numa azáfama entre a sala de jantar e a cozinha, absorvida nas misteriosas artes de pôr a mesa e preparar a comida com um timing perfeito. Na sala de estar, o meu pai estava a tocar o seu precioso piano de meia cauda Steinway. Ia avançando incansavelmente através de um medley de temas populares que, a certa altura, começava a tocar ao triplo da velocidade normal. Tocava sempre como se houvesse uma canção mais importante, algures num horizonte em permanente refluxo que nunca conseguia alcançar. Foi ao som dessa música fora de tempo que comecei a cantar em altos berros as canções de South Pacific e a rodopiar pela sala de estar.
Minha dança inspirara o meu pai a chamar-me Katrinka, mas eu nunca tinha ouvido falar da Poderosa Katrinka. Continuei a dançar. Era a Graciosa Katrinka, a Talentosa Katrinka, nascida de uma mulher tão etérea que tinha simplesmente desaparecido a flutuar.
Depois de fugir para Nova Iorque, atravessar de novo a fronteira para New Jersey foi como pôr um saco de plástico na cabeça. Quanto mais tempo lá estava, menos oxigénio tinha. Estava a ficar sem ar, sufocada pela própria casa, pela música e pelos retratos de família, pela própria família e pelo namorado no andar de cima que já vira tudo. Talvez tenha sido por isso que decidi tirar do porta-moedas o cartão que a Taylor me dera. Estava a tentar abrir um buraco no saco, a tentar respirar. O Crown Club parecia ser um instrumento bastante afiado e na altura não me ocorria nada melhor. Lá em cima, a música estava suficientemente alta para ninguém me ouvir. Não me parecia que alguém fosse atender o telefone no Crown Club, na tarde do Dia de Ação de Graças, mas, claro, alguém atendeu.
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