Na ponta leste da cidade de Alven, onde o sol parecia sempre nascer mais tarde do que devia, havia uma casa de muro baixo e jardim imenso. Mas não era um jardim qualquer — não havia flores, nem hortaliças, tampouco árvores frutíferas. Era um jardim de sombras.
Isso mesmo. Sombras.
Todas cuidadosamente plantadas e cuidadas por um homem chamado Helbram.
Alto, esguio, pele marcada pelo tempo, mas olhos que brilhavam como os de uma criança escondendo um segredo. Pouco se sabia sobre ele, exceto que havia sido professor de literatura, abandonado o cargo, comprado a casa e desde então passava os dias a enterrar algo invisível na terra e esperar que brotasse... o que ele chamava de “escuridões alheias”.
— Cada um tem a sua — dizia com naturalidade, enquanto regava o nada com um regador vazio. — Algumas crescem mais rápido quando esquecidas. Outras, quando alguém as visita.
Ninguém sabia ao certo como aquilo funcionava, mas de tempos em tempos, alguém da cidade o procurava. Nunca era anunciado. Era como se a cidade sussurrasse para as pessoas onde deviam ir. E, ao chegar ali, Helbram abria um portão de metal enferrujado e dizia:
— Qual sombra você trouxe hoje?
Certa tarde, quem apareceu foi uma mulher de meia-idade. Vestia preto, mas não de luto. Seus olhos carregavam um cansaço amargo, como quem já tentou recomeçar várias vezes, sem sucesso.
— Trouxe... a culpa — murmurou ela.
Helbram apenas assentiu. Levou-a até um pequeno espaço circular no meio do jardim. Ali, nenhuma sombra era visível, e ainda assim, quando a mulher ajoelhou-se e tocou o solo, algo nela pareceu estalar por dentro.
— Pode deixar aqui — disse ele. — A terra reconhece o que não se vê.
Ela chorou silenciosamente, como se tivesse esperado a vida inteira por aquele momento. Quando se levantou, não parecia mais leve, nem curada, nem em paz. Mas parecia... possível.
"Como se uma parte do peso tivesse decidido caminhar sozinha."
Nos dias seguintes, o espaço onde a mulher havia deixado sua culpa ganhou um contorno sombrio quando o sol batia sobre ele. Uma sombra que não vinha de nada. Só existia. Estava lá.
Com o tempo, outras pessoas foram chegando. Um jovem rapaz deixou seu medo de não ser suficiente. Um pai deixou o arrependimento de um perdão que nunca pediu. Uma adolescente, o rancor pela ausência da mãe. Cada um com sua sombra.
E o jardim crescia.
Certa noite, um garoto de uns nove anos apareceu. Trazia consigo um pequeno frasco com tampa de cortiça. Dentro, uma luzinha tênue, quase apagando.
— É minha esperança — disse ele. — Está morrendo.
Helbram se agachou, olhou para a criança com mais ternura do que jamais olhara para alguém, e disse:
— Essa não se planta aqui, pequeno. Essa a gente enterra no coração.
O menino hesitou, então enfiou a mão no bolso e retirou algo invisível. Um suspiro engasgado talvez.
— Mas posso deixar aqui o medo que a esperança vá embora?
— Isso sim. Aqui é solo fértil pra esse tipo de coisa.
E a sombra do medo do garoto, dias depois, tomou a forma de uma pequena árvore negra que não dava frutos, mas balançava mesmo sem vento.
Anos passaram. Helbram ficou mais velho, mas continuava a cuidar das sombras como quem cultiva vínculos, não vazios.
Certo dia, ele não apareceu. A vizinhança estranhou. A casa ficou fechada. O jardim, intocado.
O tempo passou, e um boato correu: alguém jurava ter visto uma flor brotar no meio do jardim. Uma flor só. Pequena, solitária.
Ninguém soube explicar.
Mas entre os que já haviam passado por lá, alguns entenderam.
"Quando a gente cultiva o que nos assombra, uma hora floresce aquilo que nos resta."
Fim.
O prédio Jasmim Azul era velho, mas não antigo o suficiente para ser considerado histórico. Situava-se entre o centro e o quase-centro da cidade, como quem nunca teve certeza de onde deveria estar. Seus corredores exalavam mofo, e o elevador era lento como uma saudade sem pressa.
Mas havia algo curioso ali.
O apartamento 203.
Ninguém o habitava. Ninguém o alugava. Ninguém sequer o anunciava.
A porta estava sempre trancada, mas sua janela — voltada para o pátio interno — ficava aberta em todas as manhãs de segunda-feira, exatamente às 07h13. E fechava sozinha às 18h00.
Alguns diziam que era um mecanismo automático. Outros, que o zelador cuidava disso secretamente. Mas entre os antigos moradores, circulava um boato: a Janela 203 mostrava o que você precisava ver — e não o que você queria.
Claro que ninguém acreditava. Até que Ana se mudou para o prédio.
Ana era uma ilustradora de livros infantis que havia deixado uma vida inteira para trás. Um noivado desfeito, pais distantes, um projeto de livro cancelado. Tudo parecia suspenso, como se a vida tivesse dado "pause" sem avisá-la.
Alugou o 201, dois apartamentos abaixo da tal janela. E em uma segunda-feira qualquer, por puro acaso ou talvez impulso, subiu até o segundo andar apenas para "ver com os próprios olhos". Achava graça no mistério.
Lá estava ela. A Janela 203. Aberta. A brisa passando por entre as cortinas empoadas. Nenhum som.
Ela se aproximou. Olhou.
E então, algo... diferente.
Não era o pátio que viu, nem a cidade. Era ela mesma — criança — sentada no telhado da antiga casa da avó, desenhando no chão com giz colorido. Ao lado, um rádio tocava uma música antiga. A imagem não era nítida como um espelho, mas fluida como uma memória viva.
Ana recuou. O coração acelerado. "Devo estar cansada", pensou. Voltou para o seu apartamento, fechou as cortinas, tentou esquecer.
Mas voltou na segunda seguinte. E na outra. E na outra.
Cada semana, uma nova cena. Às vezes feliz, às vezes dolorosa. Ela se via com antigos amigos, antigos erros, decisões silenciosas, palavras não ditas.
Na quarta semana, viu-se recusando um emprego que poderia ter mudado sua carreira — por medo. Na sexta, viu a si mesma enterrando um desenho na praia como uma cápsula do tempo, prometendo voltar. "Quando for alguém de verdade", disse a menina que foi.
Ana chorou naquela noite. Pela primeira vez em meses, desenhou. Não para o trabalho. Mas para si.
Começou a criar novamente. Pequenas histórias, personagens esquecidos. Abriu a velha pasta de ideias arquivadas. Sentiu-se viva.
Na sétima segunda-feira, a Janela 203 estava fechada.
E nunca mais se abriu.
Ana tentou voltar, esperou semanas. Nada.
Bateu na porta. Ninguém. Pediu ao zelador, que respondeu confuso:
— Moça... o 203 não tem janela voltada pro pátio. É parede cega ali.
Ela riu. Não debochando, mas em gratidão.
"Algumas janelas não existem no concreto, mas entre o que esquecemos e o que ainda somos."
E nunca mais precisou voltar.
Porque certas janelas se abrem uma única vez — só o suficiente para lembrar quem fomos antes de esquecermos de ser.
Fim.
No coração de uma viela esquecida pelo GPS e pelas ambições modernas, existia uma alfaiataria que só abria durante o outono.
Não havia placa, nem horário fixo. Apenas uma porta de madeira escura, com uma campainha de som agudo e elegante. Quem passava apressado nunca a via. Mas os que carregavam saudades no bolso, dores nos ombros ou memórias no forro do coração... esses sempre acabavam encontrando o lugar — sem entender muito bem como.
Ali costurava um homem já velho, de mãos finas e olhos que pareciam ter dormido pouco, mas sonhado muito. Chamavam-no apenas de Senhor Elías.
Sua voz era baixa, como um casaco de lã em um dia cinza. Seus gestos eram precisos, quase silenciosos, como se costurasse o próprio tempo em cada ponto.
O ateliê era pequeno, mas imensamente detalhado: rolos de tecido empilhados em cores que pareciam tiradas de sentimentos e não de tintas; tesouras penduradas como instrumentos cirúrgicos; fios dourados e prateados que cintilavam sob a luz âmbar de um lustre antigo.
O mais curioso, no entanto, não era o lugar — e sim os pedidos.
Elías não costurava roupas comuns.
Costurava despedidas.
Recomeços.
Promessas que precisavam ser vestidas.
E por um valor que jamais envolvia dinheiro.
Naquela tarde, com as folhas já cobrindo os paralelepípedos da rua como cartas não enviadas, foi Clara quem entrou.
Trinta e sete anos. Cabelos negros como tinta derramada, olhos de quem já riu muito, mas havia esquecido como. Carregava uma pasta desgastada, e dentro dela, a papelada de um divórcio que mais parecia uma sentença de esquecimento.
O sino tocou.
— Venho por um casaco — disse, tentando parecer casual.
Elías, sem levantar os olhos, respondeu:
— Que tipo?
— Um que me caiba agora.
Ele finalmente ergueu o olhar. Observou Clara como quem mede não as medidas físicas, mas os espaços em que a alma deixou de habitar.
— Entendo — murmurou. — O que está disposta a deixar no bolso?
Clara hesitou. O que aquilo significava?
— Não estou certa do que o senhor quer dizer...
— Cada peça leva um pedaço de quem a veste. Só posso costurar com o que estiver disposta a abrir mão.
Ela permaneceu em silêncio. Tirou da pasta uma fotografia amassada — tirada em uma primavera distante. Ela e ele, sorrindo. Uma bicicleta ao fundo. A foto de um tempo que já não existia.
— Isto — disse. — Eu deixo.
Elías pegou a foto com cuidado. Dobrou-a com uma delicadeza que ninguém mais teria. Guardou-a dentro de um bolso costurado à parte do tecido cru. E começou o trabalho.
Os ponteiros do relógio pareciam perder o ritmo enquanto ele cortava, alinhava, alinhavava. Nenhuma máquina. Apenas agulha, linha e um silêncio que dizia mais do que qualquer conversa.
O casaco ficou pronto antes do pôr do sol.
Era marrom, de lã pesada, com forro interno que lembrava os cobertores da infância. Bolsos fundos, como para guardar lembranças que pesam. Botões de madeira antiga. E uma gola alta, que protegia até o que não se dizia.
Clara vestiu. E não disse nada.
Mas seus ombros, antes curvados, pareciam agora conversar com o céu.
Pagou com a fotografia.
E antes de sair, perguntou:
— E se o casaco começar a pesar?
Elías sorriu pela primeira vez. Um sorriso sutil, de quem já ouviu essa pergunta muitas vezes.
— É sinal de que ainda está lembrando. Mas, com o tempo, ele só aquece.
Ela foi embora.
Nunca mais voltou.
Dizem que Elías fechou a alfaiataria naquela estação. E que em todos os outonos seguintes, só abria se houvesse alguém com uma história ainda mal costurada no peito.
Alguns duvidam que ele exista.
Outros afirmam que receberam dele um terno que os ajudou a encerrar um luto. Um vestido que curou uma culpa. Um cachecol que selou o perdão.
O que é certo...
É que naquela rua esquecida, as folhas ainda caem mais cedo.
E quem passa por lá, juraria ter ouvido o som de uma tesoura, abrindo espaço entre o passado e o que ainda está por vir.
Fim.
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