...DÍVIDA DE SANGUE...
A música pulsava alto na boate clandestina, luzes coloridas cortavam a fumaça no ar enquanto corpos dançavam, riam e se afogavam em álcool barato e promessas falsas. No fundo do salão, encostado em uma parede com um cigarro entre os dedos e um sorriso arrogante nos lábios, estava Henry Davis. Achava que estava seguro ali, escondido entre os excessos que sempre amou. Mal sabia ele que aquela seria sua última noite livre.
Dois homens enormes se aproximaram, vestindo preto dos pés à cabeça. Os olhos frios denunciavam que não estavam ali para beber. Um deles, careca e com uma cicatriz atravessando a sobrancelha, o agarrou pelo colarinho. O outro, mais magro, mas com o olhar mais sádico, enfiou a coronha da arma em suas costelas. Henry apagou.
Local: Sala de tortura – Subsolo da Mansão Edward.
Quando acordou, a dor foi a primeira a recebê-lo. Estava amarrado em uma cadeira de metal, os pulsos machucados pelas cordas e a boca coberta por fita adesiva. O ambiente era abafado, com cheiro de sangue seco e mofo. A luz crua iluminava apenas o centro da sala o resto mergulhava em sombras ameaçadoras.
E então ele apareceu.
Edward.
Terno impecável, expressão divertida, e uma pistola dourada girando lentamente entre os dedos. O homem mais temido do submundo, aquele que sorria enquanto fazia o inferno parecer uma piada.
— Te pegar foi fácil, né, seu imbecil? — disse, se aproximando com calma. — Quem faz conta e não paga acaba aqui. Cadê meu dinheiro?
Henry se contorceu na cadeira, tentando falar, em vão. Edward fingiu surpresa.
— Opa! A fita. Foi mal. — Ele arrancou a fita com brutalidade. — Agora fala!
Henry arfava, a boca seca e a voz embargada de medo.
— S-senhor... eu... eu não tenho... ainda...
— Ainda? — Edward riu, frio. — Quem deve pra mim não atrasa. Paga com dinheiro... ou com a própria vida.
Ele se virou e apertou um botão em um controle remoto. Um telão acendeu atrás dele. A imagem que surgiu fez o sangue de Henry gelar: seu pai, machucado, acorrentado, gritando por ajuda em um galpão escuro.
— Reconhece, né? Tá quase indo dessa pra melhor... mas quem sabe eu seja misericordioso, depende só de você.
Henry gritou, desesperado.
— Por favor! Eu te dou algo melhor que dinheiro!
Edward arqueou uma sobrancelha, curioso.
— Tô ouvindo. Mas cuidado com o que diz. Tô de péssimo humor hoje.
Henry, trêmulo, cuspiu a proposta:
— Elizabeth... minha ex. Ela... é linda, forte, esperta. Eu a trai... ela nunca mais quis me ver. Mas... ela é perfeita. Pode ser sua. Te dou ela como forma de pagamento.
Silêncio.
Edward parou de girar a arma. O nome ecoou em sua mente como um sussurro antigo.
Elizabeth.
Ele conhecia aquele nome. Não pela garota em si, mas pelo passado.
O pai dela... amigo de infância do pai de Edward. Já tinham brincado juntos quando pequenos, antes de o mundo virar um campo de guerra. Ele se lembrou dos olhos dela, ainda criança, rindo no quintal da casa onde os pais se reuniam.
E também se lembrou do hospital. O pai dele, morrendo, segurando sua mão e dizendo com voz fraca: “Cuide dela, Edward. Um dia... você vai entender.”
"Ela é sua alma gêmea... Meu filho... "
E então veio a obsessão.
Ele encarou o telão quando os capangas exibiram fotos recentes de Elizabeth, tiradas por seus espiões. Ela estava linda, viva, rindo ao lado de uma amiga em um shopping. Tão diferente da lembrança de infância, mas ao mesmo tempo... igual. O destino, talvez, trazendo-a de volta.
Edward sorriu.
— Tudo bem. Aceito a proposta.
Henry desabou em alívio, achando que estava salvo.
— Mas... — Edward se aproximou, colando a boca no ouvido dele. — Você vai sumir do mapa. Meus homens vão te dar um dinheiro sujo pra você se esconder bem longe. E se eu te ver de novo, você e o resto da sua família vão direto pro inferno. Entendido?
— S-sim... sim, senhor...
— Ótimo.
Edward se virou, deixando o quarto escuro com a imagem de Elizabeth ainda gravada em sua mente. Não era só pela dívida. Agora, ele a queria. Por desejo, por passado, por vingança... ou por destino.
E ninguém escapava do destino.
...ELIZABETH...
— Não... não! Por favor, não... Não mate meu pai! — imploro, a voz embargada de desespero.
— NÃO, PAAAI!
Acordei com um sobressalto, arfando, como se tivesse emergido de um afogamento. Levei alguns segundos para entender onde estava. O quarto ainda mergulhado na penumbra, o ar denso, e os lençóis colados ao meu corpo encharcado de suor.
Passei a mão trêmula pela testa e olhei ao redor, como se buscasse provas de que o pesadelo havia acabado. Meus olhos, ainda turvos, pararam sobre a fotografia na escrivaninha. Levantei-me devagar e a peguei com mãos hesitantes.
Era uma imagem de outro tempo, eu, pequena e sorridente, sentada no colo do meu pai. Por um instante, quase consegui sentir o calor daquele abraço. Como éramos felizes naquele dia. Eu era apenas uma criança, ingênua, protegida, sonhadora. Toda menina deseja um pai presente. Mas eu infelizmente não tive essa sorte.
Guardei a foto com mãos trêmulas, os olhos varrendo cada canto do quarto como se algo, ou alguém estivesse à espreita. Um arrepio percorreu minha espinha. Havia uma presença ali. Invisível, silenciosa, mas insistente.
Essa sensação me visita todas as noites desde que me mudei para Nova York, buscando paz em um bairro afastado, cercado por poucas casas e muito silêncio. Eu só queria estar sozinha, longe do caos, longe das lembranças. A solidão sempre foi um sonho. E, por um tempo, pensei em tê-la conquistado.
Mas a paz que encontrei foi rapidamente consumida por pesadelos. Sonhos horríveis com meu pai, morrendo das formas mais cruéis que uma mente doentia poderia conceber. Sempre alguém tentando matá-lo uma figura sem rosto, impiedosa, insana. E então, há ele.
Um homem. Sempre presente em minhas visões: alto, de corpo atlético, envolto em roupas elegantes como se tivesse saído de um baile. Mas seu rosto, permanece um vazio. Um vulto. Ainda assim, algo dentro de mim diz que ele é perigoso.
Não entendo. Talvez seja um sinal. Talvez meu pai esteja vivo, e sofrendo. Talvez aquele homem esteja realmente tentando matá-lo.
Não posso mais ignorar. Preciso descobrir por que ele me deixou, desapareceu sem deixar rastros, me condenando à infância sem um pai presente que eu tanto precisava.
Hoje, aos dezenove anos, tudo o que tenho são memórias partidas e pesadelos sombrios que parecem gritar por respostas. Entrei no banheiro e encarei o espelho. Meus olhos estavam embaçados de lágrimas, vermelhos, inchados. Eu chorava, não apenas de saudade, mas por aquele vazio fundo e doloroso, um buraco escuro no peito que só se fecharia no dia em que eu o visse novamente.
Fiquei ali, me observando. A expressão cansada, o rosto abatido, alguns fios de cabelo desalinhados como se refletissem o caos dentro de mim.
Foi quando aconteceu. Um vulto passou rapidamente atrás de mim. Arregalei os olhos, o coração disparando numa batida. O ar me faltou por um segundo.
— Droga, o que foi isso? — pensei, tentando controlar o pânico que me subia pela garganta. Num gesto rápido, lavei o rosto com água fria, como se aquilo pudesse me despertar daquele estado. Ou talvez, de loucura. Peguei a toalha e comecei a enxugar o rosto com mãos trêmulas.
Então, o som. Um estrondo violento ecoou pela casa. Barulhos secos e pesados, como se alguém estivesse tentando arrombar a minha porta de entrada.
— Quem será? — Olhei para o relógio pendurado na parede: 6h da manhã. Não era cedo demais. Mas o dia ainda despertava, e a luz tímida que atravessava as janelas parecia fraca diante daquela presença, algo estranho, denso, quase maligno que eu sentia se aproximar.
— Será que é algum vizinho, precisando de ajuda?
Minha mente começou a correr, como sempre faz. Penso demais. E, claro, passo horas da noite assistindo filmes de terror o que não ajuda em nada.
Talvez eu devesse trocar os filmes de assassinato e espíritos vingativos por romances clichês, daqueles cheios de beijos na chuva e declarações piegas.
Mas, verdade seja dita: Esses me fazem chorar ainda mais. Filmes sobre amores verdadeiros, almas gêmeas e promessas eternas coisas em que eu já não acredito.
Desci as escadas com uma leve pontada de dor na cabeça. Fui direto para a cozinha, em busca de um copo d'água e um analgésico.
Enquanto me apoiava no balcão, o som na porta continuava, estrondoso, insistente, como se alguém estivesse determinado a entrar.
Tomei a água em um único gole, tentando engolir junto o medo seco que subia pela garganta. Um calafrio percorreu minha espinha.
O barulho não parava. Ficava cada vez mais forte.
Até que não resisti. Me aproximei da janela da cozinha e, por uma fresta entre a cortina, espiando com cautela. Meus olhos se arregalaram de imediato.
Meu vizinho estava parado ali, me encarando. Um sorriso estampado no rosto, largo demais, estático demais. Um sorriso que não era de alegria, mas de algo mais profundo, mais distorcido. Algo... macabro.
— Droga...— sussurrei. Sem pensar muito, girei nos calcanhares e fui até a pia. Peguei a primeira faca que vi no escorredor. Segurei firme. Meus dedos estavam gelados.
Eu não fazia ideia do que ele queria. Mas sabia que precisava estar pronta.
Com a faca nas mãos, caminhei até a entrada. O barulho continuava. Cada batida parecia mais próxima.
E o medo, mais real.
Aproximei-me da porta com passos lentos, como se cada tábua do chão pudesse denunciar minha presença a algo que não deveria estar ali. A faca tremia na minha mão, mas eu a apertava com força, como se pudesse me proteger daquilo que nem compreendia.
As batidas cessaram de repente.
Silêncio.
Um silêncio tão espesso que parecia me engolir.
Fiquei parada diante da porta, o ouvido encostado na madeira. Nada. Nem passos, nem respiração. Apenas um vazio opressor do lado de fora.
Com o coração aos pulos, espiei novamente pela janela da cozinha. O vizinho sumira. Como se nunca tivesse estado lá.
A rua estava deserta.
Virei para voltar à cozinha, mas parei.
Algo mudou.
O ar estava mais frio. E então eu ouvi.
Sussurros.
Fracos. Arrastados. Como vento passando por uma garganta antiga.
Vinham de cima.
Do sótão.
Engoli seco. Nunca subia ali. Era um espaço abandonado, cheio de caixas velhas, poeira e lembranças que preferi trancar. Mas agora, algo me chamava. O sussurro se repetiu. Mais alto. Quase audível. Como se dissesse meu nome.
— Elizabeth! — Meu sangue gelou.
A faca escorregou um pouco na minha mão suada. Respirei fundo, tentando decidir se ignorava aquilo ou se subia. Se deixava a sanidade para trás ou aceitava que havia algo naquela casa, algo que esperava por mim.
Dei um passo em direção à escada que levava ao sótão.
Outro.
A madeira rangeu sob meus pés.
E então, a luz da sala piscou.
Uma.
Duas vezes.
Apagou.
Fiquei envolta em sombras.
E ouvi, bem perto do meu ouvido:
— Finalmente, acordou!
Congelei. A voz sussurrada junto ao meu ouvido não era desconhecida. Era grave, familiar, distante.
Era a voz do meu pai.
Meus olhos se arregalaram, e o instinto foi correr. Fugir. Mas algo me prendeu. Um sentimento que misturava medo e saudade como se aquela presença quisesse mais do que me assustar. Quisesse me guiar.
Olhei para a escada que levava ao sótão. O silêncio havia voltado, mas agora ele pesava de forma diferente. Como um convite sombrio.
Subi o primeiro degrau com o coração batendo no pescoço.
O segundo.
A cada passo, o ar ficava mais espesso, mais frio, como se eu estivesse atravessando um limiar entre o agora e algo muito mais antigo.
Quando alcancei a última tábua, estiquei a mão e empurrei a tampa do sótão. Ela rangeu como um lamento.
A luz fraca da manhã mal tocava aquele lugar. A escuridão ali parecia viva, quase pulsante. Iluminei com o celular. Pó dançava no ar. Caixas, molduras antigas, um baú enferrujado.
E no centro de tudo, algo me chamou a atenção.
Um espelho, grande, antigo, com a moldura de madeira escurecida pelo tempo. Mas o que me arrepiou até a alma não foi o espelho em si, e sim o reflexo.
Ali, entre sombras, estava meu pai.
Não o homem envelhecido pelo tempo, mas o pai da minha infância. O mesmo rosto gentil, o mesmo olhar preocupado. Ele não sorria.
Ele parecia: Preso.
...ELIZABETH ...
Seu olhar encontrou o meu através do espelho, e sua boca se moveu sem som. Palavras mudas, mas desesperadas.
Aproximei-me. Minha respiração ficou presa na garganta.
E então ouvi. Desta vez, a voz dele veio de dentro do espelho, como se atravessasse outra dimensão para me alcançar:
— Filha... Me ajude... Antes que ele me mate!
— Ele quem? — Mas antes que eu dissesse qualquer coisa, algo se moveu dentro do espelho. Uma sombra.
Alta. Distorcida. Como um vulto humano coberto por névoa escura. Surgiu atrás de meu pai no reflexo.
Ele virou-se, apavorado. E num instante, sua imagem foi engolida pela escuridão.
O espelho trincou com um som seco.
Dei um passo para trás, o celular quase caindo da minha mão.
A última coisa que ouvi, antes do silêncio engolir o sótão de novo, foi uma única palavra sussurrada entre as rachaduras do vidro:
— Procure-me!
Fiquei paralisada. As vozes, ver meu pai ali, preso no espelho. Meu coração martelava dentro do peito, acelerado, violento, como se quisesse escapar, como se fosse um aviso.
Não.
Era um aviso.
Os sonhos. As visões. Tudo fazia sentido agora. Era ele. Ele estava tentando me alcançar. Pedindo ajuda.
Meu pai estava em perigo.
Desci correndo a escada de madeira do sótão, os degraus rangendo sob meus pés trêmulos. Fui direto para a cozinha, em busca de ar. Precisava respirar. Pensar.
Mas assim que encostei no balcão, desabei.
Chorei.
Chorei por tudo que guardei por anos: a saudade, a ausência, a dor de não ter tido a chance de abraçá-lo, de dizer o quanto sentia sua falta, do quanto o amava.
E agora, ele precisava de mim, e eu não podia tocá-lo.
Minhas lágrimas mal haviam secado quando o som voltou.
Batidas na porta.
Secas. Rítmicas. Insistentes.
A faca ainda estava nas minhas mãos.
Molhada de suor, escorregando dos dedos.
— Se for alguém... Eu... Eu mato. Juro que mato. Pensei, tomada por um medo que se misturava à adrenalina.
Pingando de suor, respirei fundo e me aproximei da porta, encostando o corpo contra ela. O trinco gelado sob meus dedos.
— Quem é? — perguntei com a voz embargada.
Espiei pelo olho mágico.
Arregalei os olhos.
Era Martina. Minha melhor amiga.
— Sou eu! Sua melhor amiga surtada! — gritou do outro lado. — Abre essa porta, louca!
Ela batia como se estivesse prestes a derrubá-la.
Meu corpo cedeu ao alívio. Suspirei alto, como se soltasse o peso de mil pedras. Por um instante, pensei que fosse aquele vizinho estranho me encarando outra vez.
Destranquei a porta e abri.
Martina entrou como um furacão, já com um cigarro aceso entre os dedos, tragando com a calma de quem vive em outro mundo.
— Que droga tá acontecendo aqui? — perguntou, os olhos percorrendo cada canto da casa. — Você parece ter visto um fantasma.
— E isso aqui parece uma casa assombrada. — ela disse, com nojo na voz, soltando a fumaça devagar, como se quisesse envenenar o ar ao meu redor. — Essas paredes esquisitas, esses quadros deformados. Que horror.
Forcei um sorriso.
— Então você veio aqui só pra criticar a casa que eu aluguei? E às 6 da manhã? — minha voz saiu baixa, mas firme. Esperava alguma explicação, mas tudo o que recebi foi aquele olhar de julgamento disfarçado de preocupação.
— Gata, fala sério... Isso aqui tá mais pra cenário de filme de terror. Que lugar é esse? Você alugou porque era o único que cabia no seu orçamento, né? No fim do mundo, ainda por cima! Você tem noção do tempo que levei dirigindo até aqui?
Ela esperava uma resposta como quem espera a queda de alguém já machucado. Respirei fundo, contendo o nó que se formava na garganta.
— Ok, Martina... Podemos mudar de assunto? — minha voz agora soava mais trêmula. — Você arrombou minha porta às 6 da manhã. Nem me avisou que vinha. Eu quase chamei a polícia... por um momento, achei que fosse alguém tentando me matar.
Minha mão tremia. A lembrança do que eu tinha acabado de ver ainda ecoava dentro de mim, meu pai, no sótão, pedindo socorro, como um fantasma agarrado a uma lembrança que se recusa a morrer.
Ela soltou uma risada seca, debochada, como se tudo fosse uma piada mal contada.
— Eu percebi mesmo. Você ainda tá segurando uma faca — disse, apontando com o queixo. — Relaxa, gata. Não sou uma serial killer.
Olhei para minha mão. A faca ainda estava ali, apertada entre os dedos. Eu nem tinha notado. Soltei-a com um baque leve no balcão da cozinha, envergonhada.
— Desculpa, amiga. Eu... Eu não percebi. — Tentei sorrir, mas tudo parecia errado.
Ela deu um sorrisinho breve, mas havia algo cruel por trás dele.
— Olha... Eu sei o que você passou. O sumiço do seu pai. Sua mãe presa naquele casamento com aquele traste alcoólatra. Mas você precisa deixar isso pra trás. Precisa viver.
Ela parou por um segundo. E eu me perguntei se ela estava tentando ajudar ou apenas reforçar o quanto eu estava quebrada.
— Você devia voltar pra terapia. Lembro que você estava melhorando. Agora... Parece assustada o tempo todo. E nem quer mais sair de casa. Eu fico preocupada, sabia? Principalmente depois daquele Henry nojento.
Henry. A ferida antiga ainda aberta.
— Você precisa recomeçar. Esquecer ele.
Fiquei em silêncio.
As lembranças voltaram como uma onda gelada: Henry e seu sorriso, suas promessas, suas mentiras. Meu primeiro amor. Meu primeiro abandono.
Eu só queria ser amada. Só isso.
— Você tem razão... Eu preciso esquecer — murmurei, mais pra mim mesma do que pra ela.
— Você não tem ideia do que aconteceu. Eu, eu vi meu pai. No sótão. Ele estava lá, me chamando, pedindo ajuda. Como se ainda estivesse preso em algum lugar. Como se estivesse... sofrendo.
Minha voz falhou no fim. Os olhos marejaram.
Martina me olhou por um segundo, e então riu. Não de nervoso. Não por empatia. Riu como quem zomba.
— Qual é a graça? — perguntei, chocada.
— Você tá falando sério? Mais um dos seus sonhos malucos? É isso? Ah, amiga... Fala sério!
— Como assim? — minha voz saiu dura. Doía ver o escárnio dela onde eu buscava consolo.
— Você assiste filme de terror demais. Acorda. Seu pai te abandonou. Sumiu. Acabou. Se ele se importasse, teria ficado. Eu só tô sendo realista.
Ela tragou mais uma vez, como se cada palavra dela fosse uma sentença.
Fechei os olhos. Balancei a cabeça. A dor ali não era só pela lembrança do meu pai. Era por perceber, mais uma vez, que mesmo entre os vivos, eu estava sozinha.
Naquele instante, as lembranças de Henry também vieram à tona. Como se não bastasse a dor de pensar no meu pai, agora era ele, mais uma ferida aberta. Era sofrimento demais, tudo se acumulando dentro de mim.
Me lembro como se fosse hoje: Risos leves escapavam de mim enquanto Henry contava mais uma de suas piadas sem graça, aquelas que só faziam sentido no universo onde só nós dois existíamos.
— E aí o pato virou pra galinha e disse: “Você precisa botar mais fé em mim!” — ele concluiu, com um sorriso bobo no rosto, esperando minha reação.
— Meu Deus, Henry... Isso foi péssimo — falei entre gargalhadas, encostando de leve no braço dele.
— Mas você riu — retrucou, vitorioso, com aquele brilho nos olhos que sempre me desmontava.
Caminhávamos de mãos dadas, cada um com um sorvete na outra mão. O meu era de baunilha, o dele de chocolate. Quando vi que o dele estava quase derretendo, levei o meu até a boca dele, oferecendo a pontinha.
— Quer provar o melhor sabor do mundo? — perguntei, sorrindo.
Ele deu uma mordida exagerada no sorvete e, com um olhar travesso, passou de leve a parte do chocolate derretido no meu nariz.
— Henry! — protestei, tentando parecer brava, mas o riso escapou antes que eu pudesse fingir qualquer coisa.
— Agora sim, você tá uma delícia — disse ele, rindo alto.
Enxuguei o nariz com a manga da blusa e o empurrei de leve. A risada dele era alta e livre, e a minha acompanhava, sincera, leve, como se nada de ruim pudesse acontecer enquanto ele estivesse ali.
Foi então que ele parou, de repente, e apontou para um casal com uma criança pequena andando de bicicleta. Os dois pais andavam lado a lado, enquanto o menino pedalava entre eles, rindo com os braços abertos, como se voasse.
— Tá vendo ali? — Henry disse, apontando com o queixo. — Seremos nós daqui a uns anos. Você, eu... e um pestinha desse tamanho correndo por aí.
Ri, surpresa com a ideia, mas ao mesmo tempo tocada.
— Ah, é? Já tá me colocando em planos de longo prazo, hein? — brinquei, provocando.
— Sempre estive, você só não sabia ainda — respondeu ele, agora mais sério, os olhos fixos nos meus. Antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, ele se aproximou e me beijou. Foi um beijo doce, com gosto de sorvete, de tarde quente, de promessas que ainda não tinham sido quebradas. Eu retribuí entre risos, o coração leve, quase flutuando.
Naquele instante, tudo parecia certo.
Eu estava feliz. Realmente feliz.
Foi só muito depois, quando descobri a traição, que percebi como a dor só é tão profunda porque a felicidade foi real. Porque eu amei de verdade.
E ele também... ou pelo menos fingiu bem.
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