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A Guerreira Do Fogo

Epílogo

As sombras da noite se estendiam como dedos longos sobre a pequena cabana de madeira, e o crepitar da lareira ecoava pelo ambiente, quebrando o silêncio com pequenos estalos que pareciam sussurrar segredos antigos. Alaric e Kiara, gêmeos de olhos profundos e curiosos, sentavam-se diante das chamas, hipnotizados pelo jogo dourado que dançava nas paredes e refletia em seus rostos. Havia algo nas chamas daquela noite, algo que parecia murmurar promessas e advertências ao mesmo tempo.

Seus pais, Edgar e Angeline Huntington, observavam atentamente, cada gesto carregado de um cuidado silencioso. Edgar, com sua postura firme de general e os ombros marcados por batalhas antigas, exalava autoridade e proteção. Angeline, por outro lado, era a calma em forma humana, sua voz doce e melodiosa contrastando com a gravidade do olhar do marido.

 — Meus queridos — começou Angeline, a voz quase flutuando sobre o calor da lareira — Vocês sabem que o imperador permite o uso dos dons, mas também exige equilíbrio. Dom sem controle é como fogo sem guia… destrói tanto quanto ilumina.

Alaric e Kiara trocaram um olhar, o vínculo invisível que os unia parecia brilhar entre eles, um fio invisível de compreensão e destino compartilhado.

 — Vocês têm dons que poucos possuem — continuou Edgar, a voz carregada de gravidade — Mas com isso vem a responsabilidade de saber até onde ir e quando se conter. Não é apenas sobre proteger a aldeia… é sobre compreender a própria essência do que carregam.

Kiara apertou a mão do irmão, e Alaric assentiu com firmeza, a determinação nos olhos refletindo tanto orgulho quanto medo.

 — Nós entendemos, mamãe — disse ele, a voz firme, mas carregada de um peso que só os que veem além podem sentir.

— Não queremos trazer confusão… nem perigo à nossa aldeia — completou Kiara, olhando para as sombras que se alongavam pelas paredes.

Os pais respiraram aliviados, mas os olhares que trocavam carregavam uma preocupação silenciosa, um pressentimento do que poderia estar à espreita além da floresta, nos caminhos que o tempo ainda não havia revelado.

Enquanto a noite se aprofundava, as chamas lançavam sombras que pareciam ganhar vida, dançando pelo chão e pelo teto, formando silhuetas que lembravam formas humanas e criaturas que ninguém ousaria nomear. E no sussurro do vento que passava pelas frestas da cabana, parecia ecoar algo mais do que o frio da noite: um aviso velado de que o futuro não seria gentil.

Alaric e Kiara, ainda imersos em seu vínculo silencioso, não sabiam que aquela noite marcava o limiar entre a segurança da infância e a vastidão incerta que seus dons trariam. Algo antigo, algo que o mundo esquecera, estava acordando… e o destino deles seria entrelaçado a isso de maneiras que nenhum mortal poderia prever.

O crepitar da lareira continuava, e a noite se tornava ainda mais densa, carregada de mistérios, promessas e sombras que pareciam sussurrar: a verdadeira história apenas começou.

Capítulo 1 - A Chegada da Forasteira

Ano 350 B – Província de Noguen

O sol pairava alto sobre as copas antigas da floresta, derramando faixas de luz dourada entre os galhos espessos. O som dos cascos ecoava pelo chão coberto de folhas secas, quebrando o silêncio sagrado que habitava o coração da mata. A jovem cavalgava com pressa o vento brincava com seus cabelos negros como o ébano, lançando-os contra o rosto pálido, que reluzia sob o suor e a poeira da estrada.

A floresta de Noguen era viva. O ar cheirava a musgo e pinho, e os murmúrios do vento entre as árvores soavam quase como vozes. O corcel castanho galopava firme, vencendo raízes e troncos caídos, enquanto o ritmo do coração da jovem batia em sincronia com o animal. Quando o sol começou a se inclinar, ela reduziu o passo. Através das sombras verde-acinzentadas, surgiu um vislumbre de pedra e fumaça: o vilarejo. Pequeno, escondido, envolto por muralhas baixas cobertas de trepadeiras e liquens. As ruas eram estreitas, calçadas com pedras irregulares. Homens empurravam barris, mulheres vendiam legumes, e o ar trazia uma mistura de cheiros: pão assando, feno molhado, couro velho. O som distante de uma bigorna ressoava em cadência constante. Era o tipo de lugar que parecia adormecido no tempo e ainda assim, havia algo nas sombras que observava. Ela desmontou do cavalo, alisou o pescoço do animal e o conduziu até um pequeno estábulo próximo a uma taverna. O estábulo era modesto, mas limpo. Um garoto, talvez de doze anos, apareceu do nada, segurando um balde.

 — Vai deixá-lo aqui, senhora? — perguntou o menino, com um sotaque arrastado e curioso.

— Só por um tempo, trate dele como se fosse seu, dê a ele algo para comer por favor — respondeu a jovem, entregando duas pequenas moedas de cobre.

O menino sorriu largo e fez uma reverência desajeitada antes de levar o cavalo para dentro. Ela ajeitou a capa escura sobre os ombros e caminhou até o prédio ao lado. A taverna tinha uma placa pendurada por correntes, enferrujada, com o nome “O Machado e a Lua”. O som de vozes e risadas escapava pelas frestas da porta, misturado ao cheiro de cerveja forte e carne defumada.

Ela empurrou a porta o rangido do metal contra a madeira foi como um anúncio.

O salão se voltou para ela.

Havia lenhadores, viajantes e mercadores sentados às mesas. Um grupo jogava dados em um canto, outro ria alto de uma piada indecente. Mesmo assim, o burburinho diminuiu por um instante quando ela entrou. Sua capa escura, o porte ereto e o olhar frio denunciavam que ela não era dali. Ela seguiu até o balcão. O copeiro, um homem de cabelos prateados, encaracolados e bagunçados, com o rosto cortado por cicatrizes que pareciam mapas de batalhas antigas, enxugava um copo quando notou a presença dela. Um dos seus olhos era de um azul pálido, quase translúcido, enquanto o outro, tomado por uma sombra escura, refletia a luz das tochas de um jeito quase sobrenatural. Apesar da aparência marcante, havia algo calmo em seus movimentos, como quem já vira o suficiente do mundo para não se espantar com mais nada.

 — Boa tarde, forasteira — disse ele, com um sorriso educado, mas curioso — Vai querer algo para beber? A cerveja de cevada é a melhor da província.

Kiara pousou as mãos enluvadas sobre o balcão e respondeu, num tom calmo, mas direto:

 — Estou procurando um homem.

O copeiro arqueou as sobrancelhas, divertido.

 — Hah, costumam procurar bebida, não homens, mas diga lá, quem seria ele?

— Ricky Hunt.

O nome caiu no ar como uma pedra no lago. O sorriso do copeiro sumiu por um instante, substituído por um olhar de leve tensão. Ele coçou o queixo, desviando o olhar para os outros clientes.

 — Ricky, é? — repetiu, num tom mais baixo, como se contasse um segredo — Não me lembro de ter visto esse nome por aqui…

— Não minta para mim — disse ela, firme — Ele esteve aqui, eu sei.

O copeiro estudou-a, tentando decifrar quem ela era. Seus olhos analisavam cada detalhe o punho da espada sob a capa, o colar de couro no pescoço, o modo como ela se mantinha ereta, mesmo cercada por desconhecidos.

Por fim, ele suspirou.

 — Talvez eu saiba de quem está falando, mas o tipo de gente que você procura não gosta de ser procurado — Limpou as mãos no pano — Volte quando o sol se por, é quando as pedras desta vila ganham vozes, se é que me entende.

Ela manteve o olhar firme.

 — E onde posso esperar até lá?

— A melhor pousada fica na praça central, em frente ao chafariz — disse ele, inclinando-se levemente — A Casa do Cisne, diga que foi Erwin quem indicou.

Ela assentiu.

 — Obrigada, Erwin.

— E um conselho, senhorita — acrescentou ele, antes que ela saísse — Aqui, quanto menos perguntas fizer, mais tempo vive para ter respostas.

O olhar dela endureceu, mas um leve sorriso escapou no canto da boca.

 — Prometo tentar sobreviver.

A taverna voltou ao seu burburinho enquanto ela se afastava.

O ar da rua estava mais frio.

O caminho até a praça era curto, mas cheio de vida: vendedores desmontando barracas, crianças brincando na fonte, velas acesas nas janelas. O chafariz era antigo, com estátuas de anjos e água cristalina refletindo o último brilho do entardecer.

A pousada “Casa do Cisne” erguia-se logo à frente paredes de pedra cinza, janelas com molduras de madeira entalhada e um letreiro branco com a imagem desbotada de um cisne. O som de vozes e pratos vindos do interior dava um ar acolhedor.

Ela entrou. O interior era quente e perfumado com ervas queimando no braseiro.

Uma mulher robusta, de cabelos ruivos presos num coque e avental limpo, surgiu atrás do balcão.

 — Boa tarde, senhorita, busca abrigo?

— Sim, preciso de um quarto por tempo indeterminado, pago adiantado.

A mulher arqueou as sobrancelhas, surpresa com o tom decidido, mas sorriu gentilmente.

 — Temos um quarto no andar de cima, vista para o chafariz, posso preparar uma refeição quente também.

Ela retirou algumas moedas de prata da bolsa.

 — Combinado — Pausou por um instante — E… ninguém precisa saber que estou hospedada aqui.

A mulher assentiu, compreensiva.

 — Aqui, moça, a gente só fala quando pedem para falar — Entregou-lhe a chave, uma peça de ferro antiga com um cisne entralhado nela — Suba pela escada à direita.

Ela subiu lentamente, o som de seus passos ecoando pelo corredor de madeira. O quarto era simples: cama de lençóis limpos, uma mesa pequena, uma janela com vista para a praça iluminada por tochas. Ela tirou a capa, respirou fundo e olhou pela janela. O vento balançava as chamas das tochas, e as sombras das pessoas dançavam sobre as pedras. O mundo lá fora parecia tranquilo demais para quem carregava segredos tão pesados.

A jovem encostou a testa no vidro frio, os olhos fixos no horizonte.

Em algum ponto daquela vila, Ricky Hunt estava escondido e ela o encontraria.

Custasse o que custasse.

*****

O céu mergulhou num crepúsculo avermelhado antes de se dissolver em tons de chumbo. As tochas ao redor da praça acenderam-se uma a uma, como pequenos sóis tremulando entre o frio e o mistério. A brisa que vinha da floresta trazia o cheiro úmido da terra e o sussurro dos galhos, e Kiara, do alto de seu quarto, observava o vilarejo se recolher  os últimos mercadores guardando as carroças, o riso distante de homens embriagados escapando pelas janelas das tavernas.

Ela soltou um suspiro lento.

As mãos trêmulas de leve, o corpo cansado da viagem, mas a mente alerta.

Ricky Hunt.

Aquele nome pulsava em sua cabeça como uma cicatriz antiga.

Vestiu novamente a capa escura, prendeu a adaga na cintura e desceu as escadas em silêncio.

O salão da pousada estava quase vazio, apenas o crepitar do braseiro e o murmúrio de vozes distantes.

Quando cruzou a porta, o vento frio da noite a atingiu, levando consigo o som das cigarras e o aroma de lenha queimada.  As ruas estreitas refletiam o brilho das tochas em poças d’água, e cada passo ecoava entre as pedras molhadas. A taverna “O Machado e a Lua” reapareceu diante dela, a placa balançando ao sabor da ventania, o som das vozes masculinas se misturando ao tilintar de copos e risadas.

Ela hesitou por um instante diante da porta, não por medo, mas pela consciência de que cruzar aquele limiar seria entrar de vez num jogo que talvez não tivesse volta.

Empurrou a madeira.

O mesmo rangido respondeu, como se a taverna a reconhecesse.

O ambiente estava mais denso, tomado pelo cheiro de álcool, suor e fumaça. As tochas projetavam sombras nas paredes de pedra e os rostos dos homens ali dentro pareciam entalhados em ferro: duros, fatigados, perigosos. O copeiro Erwin, atrás do balcão, ergueu o olhar e, ao reconhecê-la, franziu discretamente a testa, não esperava que ela voltasse tão cedo.

Ela se aproximou, firme, o som das botas abafado pela madeira gasta.

 — Voltei, como pediu — disse, num tom baixo.

Erwin limpou o copo, desviando o olhar.

 — E veio na hora certa... as pedras estão cheias de vozes esta noite — Ele fez um leve gesto de cabeça em direção ao canto escuro do salão — O homem que procura chegou.

O coração dela bateu forte, mas o rosto permaneceu impassível.

Seguiu o olhar do copeiro e o encontrou: encostado numa mesa de canto, um homem de barba curta e olhos inquietos, com um ar de quem já viu o inferno e sobreviveu para beber sobre ele.

Kiara caminhou até ele.

Ele ergueu o olhar, primeiro desconfiado, depois atônito.

 — O que temos aqui? Uma forasteira em busca de problemas? — provocou, com voz rouca e carregada de ironia.

Ela manteve o olhar firme.

 — Alaric Hunt, imagino que tenha esquecido o rosto da sua própria irmã.

O copo em sua mão parou no ar.

O som do bar pareceu desaparecer.

 — Kia...? — murmurou ele, incrédulo. — Mas... como?

— Fugi do reformatório — respondeu, seca — Não está feliz em me ver?

A expressão de Ricky, Alaric,  mudou num piscar de olhos.

O espanto cedeu lugar à preocupação.

 — Estou, mas você não deveria estar aqui.

Ela cruzou os braços.

 — E por que não?

Ele olhou em volta, como se as sombras pudessem ouvir.

 — Kia, não é seguro pra você, o chefe não tolera forasteiros no bar e mulheres, menos ainda.

Kiara arqueou uma sobrancelha, incrédula.

 — Não tolera mulheres? Que tipo de imbecil faz uma regra dessas?

— Kiara, fale baixo! Ficou louca? — sussurrou Ricky, a voz quase implorando.

Ela inclinou-se pra frente, o olhar cortante.

 — Não vou falar baixo, está com medo do que o seu chefe possa fazer? Pelo que vejo, ele gosta de ter subordinados que lambem suas botas, você é o capacho pessoal dele, não é?

As palavras caíram como lâminas. O rosto de Ricky endureceu, o orgulho ferido. Antes que pudesse responder, uma sombra se projetou sobre a mesa.

 — Alguém tem a língua afiada — disse uma voz baixa, firme, carregada de sarcasmo.

Ela se virou.

Um homem alto, de ombros largos, trajando roupas escuras que cheiravam a couro e sangue seco. O cabelo negro caía despretensioso sobre os olhos verdes olhos que pareciam fitar direto a alma e desmontar qualquer máscara. Uma cicatriz atravessava o canto direito do rosto, acentuando a frieza que emanava dele. Sua presença era um golpe de silêncio. Cada passo que dava parecia calculado, como se o chão o obedecesse.

 — Quem é você? — perguntou Kiara, sem recuar.

O homem arqueou um leve sorriso, de quem se diverte com a ousadia alheia.

 — Sou o imbecil que criou a regra — A voz saiu fria, quase preguiçosa, mas carregada de poder — E você, coisinha, é a criatura mais irritante que entrou no meu bar nos últimos meses.

Ricky se levantou num salto.

 —  Arvid, ela é minha irmã, não quis desrespeitar...

O homem ergueu uma mão, cortando-o no meio da frase.

 — Silêncio, Hunt— Voltou-se novamente para Kiara — Irmã, é? Que curioso, a família Hunt tem o dom de atrair encrenca.

Kiara manteve o olhar cravado nele, sem medo.

 — Se suas regras são tão frágeis que uma mulher as ameaça, talvez o problema não esteja em mim.

Um murmúrio percorreu o salão.

Alguns homens riram baixinho, outros observaram, tensos.

O sorriso do homem se alargou, perigoso, predador.

 — Gosto de ver coragem, até ela se transformar em tolice.

Ele deu um passo à frente.

Ela não se moveu.

As sombras os cercavam, o bar inteiro suspenso entre o medo e a curiosidade.

 — Diga-me, coisinha, o que veio buscar nesse vilarejo pacato? — ele perguntou, com a voz baixa, arrastada, o tom de quem provoca e testa limites.

Ela respondeu sem hesitar:

 — Um lugar na alcateia.

O silêncio se fez absoluto. Até o fogo das tochas pareceu parar de crepitar.

Os olhos de Christian brilharam com algo que misturava surpresa e sarcasmo.

 — Uma mulher... na alcateia? — Ele soltou uma risada curta, seca — Você tem mais coragem do que juízo.

— Tenho o bastante dos dois — rebateu ela — E se o que dizem sobre a força da alcateia for verdade, quero vê-la de perto.

Christian inclinou a cabeça, avaliando-a.

Depois sorriu, aquele tipo de sorriso que não promete nada bom.

 — Pois bem, coisinha... — murmurou. — Veremos se aguenta o peso do que deseja.

E naquele instante, algo se acendeu no ar.

Um pressentimento.

Uma centelha.

Do encontro entre o ferro e o fogo.

Capitulo 2 - Ecos da Noite

A noite caía lentamente sobre o vilarejo, envolvendo a vila em tons de violeta e carvão. As tochas tremulavam ao vento, lançando sombras que dançavam nas paredes de pedra e nos rostos endurecidos dos transeuntes. Kiara e Ricky saíram da taverna em silêncio, os passos ecoando nas pedras irregulares molhadas pelo orvalho, quebrando apenas o zumbido distante de uma carroça sendo puxada.

O ar frio parecia lavar a opressão que ainda pairava sobre Kiara desde o confronto com Christian Arvid. Ela puxou a capa ao redor dos ombros, sentindo o couro frio roçar contra a pele. Seus olhos negros varriam as ruas estreitas, cada sombra uma possível ameaça, cada janela iluminada um ponto de observação silencioso. Ricky caminhava ao lado dela, passos firmes e medidos, a respiração contida, como se temesse que o chão traísse o que estava por vir. O silêncio entre eles parecia pesar toneladas até que Ricky finalmente quebrou a tensão:

 — Kia o que você fez lá dentro, foi loucura — Ele engoliu em seco, olhando para a irmã de lado — Não sei o que deu em você, desafiar Christian daquela maneira ele não é só perigoso, ele é implacável, você sabe disso, não sabe?

Kiara não desviou o olhar da rua à sua frente, a mente relembrando cada detalhe do bar, cada centelha da presença de Christian. Ela falou, firme, quase como se cada palavra fosse um açoite:

 — Qual a diferença entre nós e ele, Ricky? Não se lembra do que fizemos quando ainda éramos crianças?

Ricky parou por um instante, surpreso com a franqueza, os olhos se estreitando:

 — Kia… não é a mesma coisa! Nós sobrevivemos, fizemos o que tivemos que fazer, mas ele… ele é sádico! Não há limites, não há regras para Christian Arvid, ele não tem escrúpulos.

Ela se virou para ele, o rosto iluminado pela luz amarelada das tochas, e a determinação brilhou nos olhos:

 — E você acha que o que fizemos é diferente? Somos tão ruins quanto ele, Ricky, nosso pai nos enviou para o reformatório porque crescemos em um mundo que não tinha compaixão, e você mudou seu nome e sua aparência para se esconder desse passado, não foi? Da mesma forma que eu mudei minha aparência, para nada me ligar com o passado.

Ricky respirou fundo, apertando os punhos, o queixo tenso. Ele queria argumentar, queria protegê-la, mas sabia que não podia. O silêncio se estendeu por alguns segundos, apenas o som do vento balançando as bandeiras da vila preenchendo o espaço entre eles. Finalmente, ele disse, com uma mistura de tristeza e resignação:

 — Você tem razão em muitos aspectos… o que fizemos não foi nobre, mas era nossa única forma de sobreviver, mas Christian… ele provavelmente nunca precisou lutar por nada, ele só conhece o poder, não o preço que se paga por ele.

Kiara manteve o olhar firme, mas uma sombra de emoção passou por seu rosto.

 — E é por isso que estou entrando na alcateia. Para ganhar força, experiência para estar pronta. — Ela respirou fundo, o vento frio da noite brincando com os cabelos negros como o ébano que caíam sobre o rosto — Para me vingar de nosso pai por tudo que ele fez para nossa família, por tudo o que ele nos fez passar.

Ricky engoliu em seco, o coração acelerado.

Ele sabia que a irmã não estava apenas buscando poder; ela queria justiça ou vingança, dependendo de como se olhasse.

 — Kia você tem noção do que está dizendo? Não é só força que você vai enfrentar lá dentro, é brutalidade, traição, homens que matariam sem pensar duas vezes — se aproximou, colocando a mão no ombro dela — Está preparada para isso?

Ela sorriu, um sorriso frio e determinado, que não alcançava os olhos dele.

 — Estou — A palavra saiu firme, definitiva, confiante — Preciso estar, ou você acha que vou passar a vida inteira vivendo nas sombras do nosso passado?

Ricky suspirou, a mistura de orgulho e preocupação estampada em cada linha do rosto. Ele conhecia aquela determinação; havia sido sua própria companhia durante tantos anos, mas também sabia que a trajetória que Kiara escolheu era mortal.

 — Então você realmente vai entrar nessa alcateia, por sua própria conta.

— Sim — respondeu, olhando para ele com intensidade — E você sabe que não vou recuar, mesmo que isso me mate — Seus olhos brilharam, refletindo a luz trêmula das tochas — Se quero justiça, se quero força, preciso me colocar em risco.

Ricky balançou a cabeça, a preocupação transformando-se em um sorriso resignado.

 — Teimosa… — murmurou ele, quase para si mesmo, mas alto o suficiente para ela ouvir — Mas estou com você, não deixarei você fazer tudo sozinha.

Eles seguiram pelas ruas estreitas do vilarejo, cada passo sendo um lembrete da escuridão que se escondia entre as sombras. As bandeiras de tecido gasto balançavam suavemente, e o murmúrio do vento entre os galhos das árvores próximas soava como um aviso sussurrado.  Eles seguiram pelas ruas estreitas do vilarejo, cada passo sendo um lembrete da escuridão que se escondia entre as sombras. As bandeiras de tecido gasto balançavam suavemente, e o murmúrio do vento entre os galhos das árvores próximas soava como um aviso sussurrado.

Ao chegarem à praça central, o chafariz refletia a luz pálida das tochas e da lua crescente, a água cristalina dançando em círculos lentos, lançando sombras que se retorciam sobre as pedras antigas. Kiara se deixou cair em um dos bancos de madeira, puxando a capa mais perto do corpo, o ar frio cortando a pele como navalha. Ricky sentou-se ao lado dela, o olhar fixo nas figuras escuras que se moviam ao redor do vilarejo.

 — Kia — começou ele, a voz baixa, quase sussurrada — Você precisa entender uma coisa sobre Christian, ele não vai aceitar você de braços abertos, provavelmente vai te testar de maneiras que nem imagina coisas que vão desafiar a mente, o corpo, apenas para ver se aguenta a pressão.

Kiara cruzou os braços, a luz das tochas refletindo em seus olhos negros. Um sorriso frio, quase desafiador, desenhou-se em seus lábios.

 — Que venha — Sua voz era firme, decidida — Estou preparada para tudo.

Ricky desviou o olhar, respirando fundo.

 — E não é só força física, ele vai jogar com o medo, a paciência, a confiança, vai tentar quebrar você, e se não resistir, ele vai se certificar de que todos saibam.

Ela inclinou-se levemente, apoiando os cotovelos nos joelhos, encarando a água do chafariz.

 — Então é exatamente o que eu quero, quero ver até onde consigo ir, e se vou sobreviver a isso.

 Um silêncio pairou sobre eles, apenas o murmúrio da água preenchendo o espaço. Então ela perguntou, quase curiosa:

 — Mas por que ele tem esse problema com mulheres?

Ricky bufou, olhando para o céu escuro, como se a resposta fosse tão complexa quanto os mistérios da própria noite.

 — Não sei. — Sua voz estava carregada de frustração — Nunca perguntei, mas acho que ele simplesmente não confia em vocês, talvez seja orgulho, talvez medo, ou quem sabe uma mistura das duas coisas, Christian não é alguém que você consegue decifrar facilmente.

Kiara ergueu o queixo, absorvendo cada palavra. O vento frio trouxe o cheiro da floresta, misturado ao aroma do pão recém-assado e do feno ainda úmido da praça. Cada detalhe parecia reforçar a realidade: ela estava prestes a entrar em um mundo que exigiria tudo dela.

Ela bufou, o som carregado de sarcasmo e desdém.

 — Sabe, Ricky — começou, jogando o cabelo para trás com desprezo — Tenho certeza que o problema dele com mulheres não é mistério algum, aposto que a última que ele se apaixonou o traiu, ou talvez nunca tenha sido capaz de ter alguém ao lado sem sufocar, homens como ele cheios de orgulho, feridos por qualquer desvio de lealdade, transformam isso em tirania, aposto que é só mais um homem babaca traumatizado que acha que mandar nos outros é substituir o que perdeu.

Ricky engoliu em seco, franzindo o cenho.

 — Kia, não seja assim com ele, ácida e provocativa — sua voz saiu baixa, tensa, quase como se pedisse para ela controlar o veneno que escorria de sua boca — Christian não gosta de gente que vai abrir a boca e cuspir escárnio, especialmente contra ele.

Ela riu, um som frio que se espalhou pelo ar da noite.

 — Ah, por favor… — disse, inclinando-se para frente, encarando o reflexo da lua na água do chafariz — Você não é mais o mesmo, Ricky, agora é só um “cão medroso”, engolindo ordens sem pensar, perdido, fraco, olhe para você, escondido, sem coragem de enfrentar nada de verdade.

Ricky apertou os punhos, a frustração visível na linha da mandíbula.

 — Eu mudei, sim, mas não por medo — disse com firmeza, quase rugindo, a voz carregada de emoção contida — Estou preocupado porque conheço ele, conheço a mente dele, ele não perdoa deslizes, Kia, ele não aceita provocações, e você não pode simplesmente chegar lá achando que pode ser insolente.

Ela arqueou uma sobrancelha, o canto da boca curvando-se num sorriso de escárnio ainda maior.

 — Então o que você quer que eu faça? Sorria, concorde com ele, aceite ordens e faça cara de cordeiro obediente? — ela riu, fria — Ricky, não é assim que eu jogo, nunca foi, nem será, se ele não gosta disso bem, azar o dele.

O irmão respirou fundo, olhando para ela com olhos que misturavam cansaço e um tipo de tristeza amarga.

 — Kia, você não percebe que ser assim com ele não é só um risco? — sua voz baixou, quase um sussurro — Você vai entrar num jogo que ele controla, e ser insolente com ele, isso vai fazer ele te colocar na linha de tiro dele imediatamente.

Ela se inclinou para frente, olhos faiscando como aço.

 — Eu enfrento, provo, mato se for preciso, se quero estar nesse mundo, se quero sobreviver nele, não vou me curvar ao medo que ele tenta impor.

O silêncio caiu sobre eles como uma sombra densa. Só o murmúrio da água no chafariz se fazia ouvir, cada gota refletindo o brilho pálido da lua. Ricky desviou o olhar, respirando fundo, sabendo que não podia convencer Kiara a recuar. Ela era fogo, e fogo não se moldava às correntes de ninguém.

 — Então faça o que quiser, mas não diga que eu não avisei — disse ele, quase resmungando, os dedos cerrados, severamente preocupado — Christian Arvid não perdoa arrogância, nem ousadia mal calculada.

Ela sorriu, fria, quase cruel.

 — Então que ele venha — a voz dela cortou a noite como uma lâmina — Porque arrogância e ousadia são tudo o que me resta.

Ricky baixou a cabeça, a mistura de orgulho e medo estampada em cada linha do rosto. Ele conhecia a irmã, sabia que ela não recuaria, e o que quer que Christian Arvid fosse, a tempestade que se aproximava estava apenas começando.

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