O som das ondas era como uma canção antiga que Erika havia esquecido. O mar sempre foi seu refúgio, e naquele fim de tarde dourado, a praia estava quase vazia. Apenas algumas crianças brincando longe, algumas senhoras caminhando na areia e ela… sentada, de chinelos e vestido leve, sentindo a brisa beijar sua pele cansada.
Ela apertava levemente as mãos — um gesto inconsciente — tentando afastar o peso da memória. Havia saído cedo do fórum, depois de mais uma audiência tensa sobre a adoção da menina que pretendia criar como filha. Uma menina doce, de olhos curiosos, que ainda vivia em um abrigo. O processo estava em andamento, mas cada página assinada era uma batalha emocional.
Ao lado, a mãe, dona Laura, se aproximou com duas águas de coco. Sentou-se ao lado da filha sem dizer nada, entregando a bebida com um sorriso suave. Laura era dessas mulheres que falavam mais com os olhos do que com palavras. E naquele momento, bastava.
— Sabe, mãe… — Erika disse baixinho. — Hoje, no fórum, eu senti como se estivesse finalmente dando um passo pra mim.
Laura assentiu, acariciando o braço da filha.
— Você deu. E ainda vai dar muitos. Não é porque um homem te derrubou que você vai ficar no chão pra sempre.
Erika sorriu com os olhos úmidos. Laura sempre dizia as palavras certas, mesmo quando tudo parecia errado.
— Leon tentou me intimidar de novo. Disse que eu estava me precipitando, que eu era instável pra ser mãe. — A voz dela saiu engasgada. — Como ele tem coragem?
— Porque ele perdeu o controle. E homens assim não suportam ver a mulher que eles achavam que dominavam se reerguendo. Mas você… — Laura olhou nos olhos da filha. — Você é mais forte do que nunca, Erika.
A pedagoga olhou para o mar mais uma vez, como se tentasse encontrar ali todas as respostas que a vida lhe negara. Foi então que, não muito longe, uma figura familiar caminhava na areia com duas crianças. Um homem alto, elegante, de passos tranquilos, mas olhar distante.
Guilherme Alencar.
Ela o reconheceu na hora.
O juiz. Viúvo. Discreto. Pai de dois filhos. Eles tinham se cruzado poucas vezes no fórum, sempre com breves palavras formais. Mas naquele dia… ele não estava de terno. Estava descalço, com bermuda e camiseta clara. Mais humano. Mais… tocável.
Os olhos deles se encontraram por um breve segundo.
Um segundo longo o suficiente para que os fantasmas do passado dessem lugar a algo novo, silencioso, mas real.
Erika desviou o olhar, sentindo o coração bater rápido. Talvez fosse só o vento. Talvez fosse só um momento qualquer.
Mas algo dentro dela sussurrou:
“Você ainda pode viver o amor.”
Guilherme caminhava devagar pela areia com os filhos. Amanda, sua filha mais velha, corria em direção ao mar, rindo com o irmão, Erike, de dez anos, que fingia fugir das ondas. O juiz observava os dois com um misto de ternura e saudade. Às vezes, bastava vê-los sorrindo para que a dor da ausência de Helena, sua esposa, apertasse menos.
Dois anos desde que ela partira.
Dois anos desde que ele enterrou a mulher que havia sido seu amor, sua parceira, sua fortaleza. Mas o câncer foi cruel, silencioso, implacável. Levou-a rápido demais, sem tempo para despedidas, sem tempo para promessas futuras.
Desde então, Guilherme se fechou. Vivia entre processos, audiências e os cuidados com os filhos. Sua mãe o ajudava muito, uma mulher sábia, doce, mas firme. Ela insistia para que ele não se apagasse, para que não deixasse a dor tomar conta de tudo.
Mas ele não conseguia… até agora.
Naquela tarde, algo diferente aconteceu.
Enquanto caminhava na praia, seu olhar cruzou com o de uma mulher sentada sob o sol. Ela estava com uma senhora — provavelmente sua mãe — e segurava uma água de coco. O vestido claro se movia com o vento, e os cabelos loiros com luzes refletiam o tom dourado do entardecer. Havia algo nela que o desconcertou: a serenidade misturada com uma tristeza silenciosa. Uma beleza clássica, mas real.
Ele a reconheceu.
Erika Soares.
Pedagoga. Uma mulher respeitada por sua postura ética, mas também conhecida por sua história difícil com o ex-marido. Já a vira no fórum algumas vezes, geralmente acompanhada da advogada Isis Victoria, sua colega e amiga. Guilherme sabia que ela estava lutando por um processo de adoção, e que tinha enfrentado humilhações no passado.
Havia algo de admirável em alguém que, mesmo após ser tão ferida, ainda lutava para amar.
Enquanto seus filhos se afastavam um pouco, brincando com outras crianças, ele se aproximou do quiosque mais próximo para pedir uma água. Mas antes de voltar, olhou de novo em direção à mulher que o observava discretamente.
Erika também o reconheceu.
O juiz do semblante sério e da voz grave. Sempre educado, mas inacessível. Era admirado por sua imparcialidade, por sua integridade, mas poucos sabiam da dor que ele carregava no peito. E agora ali estava ele, com os pés na areia, fora do fórum, sem toga nem distância. Real.
E algo no olhar dele mexeu com ela.
Um convite silencioso. Um despertar lento.
Laura percebeu e cutucou a filha com leveza.
— Ele está olhando pra você — disse baixinho, com um sorrisinho no canto da boca. — E não é com olhar de juiz, não.
Erika deu um sorriso tímido, balançando a cabeça.
— Mãe…
— É só um homem, filha. E você ainda é uma mulher. Está viva. Não se esqueça disso.
Guilherme tomou coragem. Caminhou devagar até a direção delas.
— Boa tarde — disse com a voz grave, mas gentil. — Não quis interromper, mas… nos conhecemos, não é?
Erika levantou o olhar, o coração acelerado.
— Já cruzamos algumas vezes no fórum… sou Erika.
— Guilherme — ele estendeu a mão. — Mas aqui, sou só pai em modo praia.
Ela riu. Um riso leve, quase esquecido.
E foi assim que tudo começou.
Na areia. No acaso.
No instante em que dois corações partidos se permitiram respirar.
Agora que eles se encontraram fora do fórum, o destino vai começar a agir.
O som da chave girando na ignição do carro novo ainda arrancava um sorriso de Erika. Era um modelo simples, nada luxuoso, mas para ela, simbolizava liberdade. Havia comprado com o dinheiro da herança do pai — um gesto que a fazia sentir orgulho e dor ao mesmo tempo. Não era o carro em si, mas o que ele representava: o recomeço.
Quando deixou a casa da família de Leon, saiu apenas com a roupa do corpo e a dignidade ferida. Não quis discutir bens, muito menos lutar por algo que sabia que viria acompanhado de mais humilhações. Preferiu recomeçar com o pouco que tinha. Trabalhou duro, aceitou o que aparecia, deu aulas em bancas de cursinhos, reforço escolar, até em supermercados — e nunca abaixou a cabeça.
Agora, estava vivendo um novo momento.
Havia conseguido o cargo de coordenadora em uma escola de ensino fundamental, uma instituição particular bem estruturada e respeitada. A entrevista fora um sucesso, e o currículo sólido em pedagogia, somado à sua experiência de vida, pesaram a seu favor. No dia em que recebeu a ligação da diretora com a notícia, chorou por quase uma hora com a mãe, Laura, ao seu lado.
Foi então que tomou outra decisão: alugou um pequeno apartamento para morar com a filha, perto da escola. Um lugar só delas, com móveis novos escolhidos com cuidado, cores claras, quadros nas paredes, flores na varanda. Cada detalhe era um lembrete de que ela estava livre. E viva.
Naquela manhã de sexta-feira, Erika estava na sala da escola organizando a semana pedagógica quando Isis lhe mandou uma mensagem.
📱 “Amiga, hoje vou passar no fórum no fim da tarde. Vai estar por lá?”
📱 “Sim. Vou entregar uns documentos na vara da infância. Nos encontramos lá?”
📱 “Perfeito. Talvez o juiz apareça... aquele lá. 👀”
Erika riu, mas sentiu o estômago leve. Desde o encontro na praia, há poucos dias, ela não conseguia parar de pensar em Guilherme. O jeito como ele falava. O modo como olhou para ela sem julgamento, sem pena. Como homem. Fazia anos que não se sentia vista assim.
No fim da tarde, com o sol já mais baixo, Erika caminhava pelos corredores do fórum com sua pasta sob o braço. Usava um vestido azul marinho que marcava sua cintura com elegância. Clássica, mas com um toque de feminilidade que ressurgia aos poucos. Cabelos soltos, maquiagem leve, salto discreto.
E foi então que o viu.
Guilherme, de paletó cinza escuro, parado próximo à recepção da sala da infância. Ele estava lendo algo, mas levantou o olhar ao sentir a presença dela. Um sorriso discreto surgiu em seus lábios.
— Boa tarde, doutora Erika.
Ela parou, sentindo o coração dar um pequeno tropeço.
— Boa tarde, doutor Guilherme… não precisa do “doutora”, pode me chamar só de Erika.
— Então só se me chamar de Guilherme também — respondeu, e os dois sorriram.
Houve uma pausa. Um daqueles silêncios confortáveis que dizem mais do que muitas palavras.
— Está bem? — ele perguntou com gentileza.
— Estou… reconstruindo. Mas estou bem, sim.
Ele assentiu devagar.
— Você parece estar indo muito bem.
Ela agradeceu com um olhar tímido, mas confiante.
E antes que a conversa pudesse se encerrar, ele completou:
— Não costumo fazer isso, mas… se algum dia quiser tomar um café, fora dos corredores do fórum… me avise.
Erika congelou por um segundo. Não esperava. Não naquele momento.
Mas sorriu. Um sorriso verdadeiro, de mulher que está voltando a acreditar.
— Eu te aviso sim, Guilherme.
E ali, entre paredes de justiça e histórias quebradas, um novo capítulo começou a ser escrito.
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