Capítulo 01
Em 1450, na Idade das Trevas, a Igreja Cristã decretou que aquelas consideradas esposas do próprio Diabo seriam queimadas vivas por prática de bruxaria. Desde o infeliz decreto, várias mulheres — bruxas ou não — foram acusadas e levadas à fogueira, queimadas vivas para, segundo a Igreja e Deus, pagarem por seus pecados no inferno.
— Querido, o que vamos fazer? — diz ela chorando entre soluços, enquanto segura as mãos trêmulas do marido. — Meu amor...
— Não chore. Apenas se esconda. Eles não vão machucar você.
Eles arrombam a porta com violência e arrastam o casal para fora da casa, onde há várias pessoas do povoado e duas enormes fogueiras acesas ao lado.
— NÃO! POR FAVOR! MINHA ESPOSA NÃO TEM CULPA, POR FAVOR!
— NÃO! ELES NÃO SABEM O QUE ESTÃO FAZENDO! HA... SOLTEM-ME!!
Eles jogam a moça em um enorme monte de madeira e a amarram para queimá-la viva.
— NÃO! POR FAVOR!
— AGORA, QUEIMEM A BRUXA!
— NÃOOO, MARINAAA!
— AAAAH! — Ele grita enquanto ela queima nas enormes chamas da fogueira.
— Haaa... não... hahaa... meu amor, não... ahaa — ele grita desesperadamente ao ver sua amada queimar viva ao seu lado. Um grande ódio cresce em seu peito.
— Seus bárbaros malditos... — diz ele entre soluços, ajoelhado, com as mãos amarradas para trás.
— Sua esposa está sendo purificada, para que Deus aceite sua alma no paraíso — diz o bispo, montado em um cavalo ao lado de dois guardas reais.
— Minha esposa não era uma bruxa! Ela era apenas uma mulher da ciência!
— Ciência, você diz... mas era bruxaria.
— NÃO! Vocês estão cegos e loucos! Mataram minha mulher por não compreender! MATARAM O AMOR DA MINHA VIDA POR SEREM OBCECADOS PELO FALSO DEUS DE VOCÊS!
— OLHE COMO FALA DO TODO-PODEROSO! A bruxa o colocou sob um feitiço, e até sua crença em Deus foi afetada! Mas Ele aceitará seu perdão e salvará sua alma desviada.
— Haha... pedir perdão? Se Ele não consegue compreender... então é tão falso quanto sua palavra. Malditos sejam vocês e o seu falso Deus.
— Que Deus tenha pena desta alma...
— Hum?! O que ele está fazendo?
— Está falando... latim?
— Tenebris in tua maledictione de sanguine fuso manum porrigo, sume animam meam pro solutione et redde eos qui cruciatum meum inceperunt... — o homem fala em voz baixa, com a cabeça abaixada, ainda ajoelhado.
— Ei! O que ele está fazendo?!...
— Pare, aberração! — o guarda lhe dá um soco nas costas, fazendo jorrar sangue pelo rosto.
O homem se levanta ainda recitando em latim, vai até a parede e, com o sangue em sua língua, desenha uma estrela de cinco pontas dentro de um círculo.
— Ut bestiam marchionis serpentes voco serpens marcas...
571 anos depois de Cristo. Ano de 2021.
— Aaai... Luka, sai da cama! — diz Camila, batendo na porta euforicamente.
— Já vou, já vou... hum... — responde Luka, com a cara inchada de sono e a voz rouca.
— Anda, a gente vai se atrasar! Nosso voo é daqui a três horas!
— Tá bom... haaa... já tô indo... hum...
Ele se levanta e vai ao banheiro tomar um banho gelado, tentando acordar. Os dois estão se preparando para viajar à cidade natal da falecida mãe, na Ucrânia, que havia morrido de infarto duas semanas antes. Agora, Luka, Camila e Shofi — namorada de Luka — iriam morar com a tia Merry.
Quando crianças, Camila e Luka ouviam histórias da mãe sobre a cidade onde nasceu: como ela se perdia nas grandes florestas escuras, tomava banho nos lindos lagos que cercavam a cidade e comemorava a incrível festa de Ivana-Kupala, com guirlandas de flores feitas à mão por ela e suas amigas.
Mesmo tendo amigos de infância, Luka nunca foi apegado à cidade nem teve interesse em viver lá. Já Camila sempre sonhou em morar junto da tia e dos amigos de infância.
— Haaai! Tô tão animada pra conhecer sua tia, Luka!
— Hum... que bom — diz ele, totalmente desanimado, jogando no celular.
— Ai, credo, até desanimei...
— Liga não, Shofi. Ele só tá assim porque não quer ir morar em Brígida — explica Camila, sentando-se no banco, com um cappuccino numa mão e uma revista na outra.
— E quem é que quer deixar Nova York pra morar num fim de mundo onde ninguém ouviu falar?! — reclama Luka, com raiva.
— É só por isso que não gosta de Brígida?
— É! E também porque aquele lugar é muito estranho. O povo de lá é todo esquisito! Sem contar que sempre tive pesadelos quando morávamos lá.
— Pesadelos?
— Hahaha! Ele insistia em dizer que tinha uma “malca” correndo na floresta à noite e que vinha buscá-lo! — ri Camila, zombando do irmão, que fica furioso.
Eles discutem até o aviso do voo, que sairia em cinco minutos. Depois de embarcarem, Luka coloca os fones de ouvido para evitar as conversas de Camila, já que ela não entendia o quanto ele detestava aquela cidade.
Ao chegarem, pegam um ônibus, cruzando uma ponte que levava a uma estrada de terra cercada por uma imensa floresta.
— Nossa, esse lugar é demais! — diz Shofi, tirando várias fotos, impressionada com a beleza das florestas de Brígida.
— Huum... — Luka solta um suspiro de desânimo total, deixando claro que não está feliz.
Eles seguem pela estrada até chegarem a Brígida, uma linda cidade antiga, cheia de lendas e mistérios. Luka já se sente desconfortável. O ônibus para diante dos portões da fazenda onde Merry mora, num enorme casarão antigo que pertence à família há gerações.
— Huuuf... — Luka para diante da casa, hesitante em entrar, tomado por um medo antigo.
— Vamos, Luka — diz Shofi, puxando-o pelas mãos para tranquilizá-lo.
— Ah... claro — responde ele, nervoso e um pouco assustado.
— Vamos, Luka!
— Ok, ok... huf...
— Olá, meus meninos! Há quanto tempo! — exclama Merry, alegre ao ver os sobrinhos após nove anos. — Vamos entrando! Seus quartos estão exatamente iguais àquela época. Não mudei nada!
— Aaah... minha caminha de princesa!
— Brega! — provoca Luka.
— Cala a boca, seu fedido!
— Bruxa! — ele mostra a língua.
— Meu Deus, vocês continuam idênticos àquela época!
— É, a Camila continua feia!
— Feio é você, ridículo!
— Aplique falso!
— Meu aplique não é falso!
— Tá, tá, chega de brigar, gente! Escolham os quartos e fiquem à vontade! — diz Merry, rindo.
— Valeu, tia! — Luka a abraça, e ela retribui com um beijo.
— De nada, meu bem. Agora vai.
— Tá bom.
Desde criança, Merry sempre foi muito apegada a Luka, mas depois que Angélica — mãe de Luka — foi embora, elas se distanciaram. Há nove anos não se viam. Merry está realmente feliz por rever os sobrinhos e conhecer Shofi, namorada de Luka.
Enquanto as meninas aproveitam o pôr do sol para tirar fotos, Luka fica deitado, olhando para o teto, ouvindo música no volume máximo, perdido nas lembranças dos pesadelos da infância — o motivo de tanto medo daquela cidade.
Mais tarde, Luka, Merry, Shofi e Camila se reúnem em volta de uma mesa no jardim, iluminada por luzes que Luka pendurou numa árvore.
— Então, o que acharam da comida?
— Uma delícia!
— Tá muito gostosa, tia — responde Luka, desanimado.
— Luka, está se sentindo bem, meu amor? Se quiser, posso preparar um chá de ervas pra você.
— Não precisa... eu só tô cansado da viagem.
— Tem certeza?
— Sim... vou dormir. Assim fico melhor pra amanhã.
— Ok, boa noite.
Luka sobe para o quarto, se joga na cama e fica encarando o teto, pensando nos pesadelos que o perseguiam na infância.
— Huh... haa... Amanhã eu vou ficar melhor... — diz, virando-se e se cobrindo.
Durante a noite, enquanto todos dormem, Luka acorda com barulhos fortes, como se algo batesse na janela.
— Hum...? O quê...? — ele se levanta, confuso, pega os óculos na mesinha e vai até a janela. Só vê o jardim escuro e silencioso, o vento balançando as flores e as árvores.
— Hum... só posso estar ficando louco. É melhor voltar a dormir. — Luka vira-se e, de repente, um corvo se atira contra o vidro, quebrando a janela e caindo morto e ensanguentado no chão. Luka se assusta — isso nunca aconteceria em Nova York.
— Um corvo...? Essa cidade é muito estranha... — diz, fechando as cortinas e voltando a dormir.
Durante a madrugada, o quarto está tão frio que sua respiração se condensa no ar. Luka acorda tremendo.
— Que merda... agh... vou buscar outro cobertor... — resmunga, indo até o armário e pegando mais dois lençóis de pele. — Essa casa não tem nem um maldito aquecedor... huu... — reclama, tremendo com os lábios roxos.
Ele se deita novamente, de costas para a porta. Logo, ouve o som de cacos se partindo, como se alguém andasse sobre os vidros quebrados. Luka começa a se assustar — era real demais para ser imaginação. Os passos se aproximam. A respiração dele fica pesada e rápida, o coração dispara, o corpo treme.
De repente, Luka abre os olhos e se vê deitado no teto da sala, incapaz de se mover ou gritar. Diante dele, uma figura de cabelos brancos, rosto oculto, e olhos amarelos — como os de uma cobra. Ele entra em pânico, tentando se mover, mas nada acontece. A figura se aproxima lentamente, sobe até Luka e solta um grito terrível.
Luka cai na cama gritando desesperadamente:
— AAAH! NÃO! SAI! NÃOOO! — ele se debate, acordando todos da casa.
— Luka?! — diz Merry, preocupada.
— AAAHAA! SOCORRO! NÃO! SAI DAQUI! — continua gritando e suando.
— Luka...
— T-tia...? Ahaa... — ele acorda, confuso, tremendo e em pânico, mas aliviado de ter saído do pesadelo.
— Meu amor, o que foi? Por que esses gritos?!
— E-eu vi... ele... tava na sala... sentado na poltrona... — fala desesperado.
— Tudo bem, senhora Merry, eu vou dormir com ele — diz Shofi, sentando-se ao lado dele. Luka encosta a cabeça em seu ombro, e ela o envolve com os braços.
Merry vai até a cozinha, prepara um copo de chocolate quente com ervas calmantes e leva para Luka.
— Tome, meu amor... respira, ok? — diz Shofi, entregando o copo. Luka bebe tremendo, mal conseguindo respirar.
Depois de algumas horas, ele finalmente adormece, abraçado em Shofi, que também pega no sono.
Pela manhã, Luka acorda antes de todos e fica tocando guitarra num balanço pendurado numa enorme árvore do jardim.
— Luka, já está acordado — diz Merry, sentando-se ao lado dele e cobrindo-lhe os ombros com um sobretudo de crochê. — Está se sentindo melhor?
— Huf... sim, tô bem. Não se preocupa.
— Seus pesadelos voltaram, não é?
— Sim... é o que parece. Mas talvez seja porque fiquei pensando muito nisso e acabei sonhando.
— Mas isso não pode continuar, Luka. Você queimou em febre, e alta!
— Tia, não foi nada... — ele é interrompido quando Merry põe a mão em seu ombro.
— Eu vou te levar até a bruxa da cidade. Ela pode te ajudar.
— Tia?! Bruxa? Essas coisas não existem! E me levar num lugar estranho com gente estranha não vai piorar meus pesadelos?
— Não. Ela vai te ajudar. Vamos hoje à tarde.
— Tia...
— Não discute. Já está decidido. Vamos, o café está pronto.
— Huf...
Eles se levantam e entram para o café, enquanto Luka pensa em mil coisas, preocupado com a ideia de visitar uma “bruxa” — o que só o deixava mais nervoso e assustado.
Fim...
Capítulo 02
Depois da noite aterrorizante e traumática para Luka, Merry tomou a decisão de levá-lo a uma bruxa da cidade para tentar entender por que ele sempre tinha aqueles pesadelos somente quando estava em Brígida.
Luka ainda estava debilitado pela febre alta da noite anterior. Sentia-se cansado, com uma leve gripe, o nariz escorrendo e soltando alguns espirros.
— Luka, vamos! — diz Merry na porta, batendo o pé de impaciência pela demora.
Enquanto isso, Luka, ainda no quarto, estava totalmente apavorado. Não estava nem um pouco feliz com a ideia de visitar uma bruxa, temendo que isso apenas alimentasse seus sonhos horríveis.
— Huf... ok, estou pronto — diz, apoiando a mão esquerda na parede e descendo lentamente as escadas em direção à porta, onde sua tia o aguardava, impaciente.
— Finalmente.
— Vamos logo, tia... huf — responde ele entre suspiros desanimados.
Enquanto seguem de caminhonete para a casa da mantiqueira — que ficava no meio da floresta, em uma fazenda entre as montanhas — Luka tira várias fotos para que Shofi poste em suas redes sociais.
A paisagem era linda e selvagem, com árvores altas e verdes formando trilhas sinuosas pela mata. O ar puro e úmido fazia o ambiente parecer vivo. Em meio à floresta, eles chegam a um imenso campo de flores — pétalas coloridas formavam um verdadeiro arco-íris natural, e o vento fazia as folhagens dançarem, subindo ao céu e criando uma cena mágica e nostálgica.
Luka se lembrava de quando ele e Camila corriam por ali, rindo com os amigos, comendo bolinhos de sakura até não aguentar mais.
Logo, chegam a uma ponte de madeira sustentada por cordas, que passava sobre um rio escondido numa pequena vala.
Ao atravessarem a ponte, continuam a pé por um longo caminho entre as árvores, subindo em direção às montanhas. Durante a caminhada, passam por formações rochosas de aparência estranha, mas estranhamente familiares para Luka — como se ele já tivesse visto aquele lugar em algum sonho antigo.
Enquanto sobe, ele continua tirando fotos. Em uma delas, percebe uma sombra de abertura escura em uma das montanhas.
— Não sabia que havia cavernas por aqui — comenta ele, observando a imagem.
— Nem todas — responde uma voz masculina. — Só no monte Zmiya.
— Zmiya? Isso não significa “cobra”?
— Sim. Mas é por causa de uma lenda local — diz um rapaz alto, de cabelos escuros e olhos verdes, aproximando-se.
Ele cumprimenta Merry com um abraço. Em seguida, ela apresenta Luka.
— Jacob! Há quanto tempo! Luka, lembra do Jacob? — diz ela, animada.
— Luka? Luka Skavronski?
— É Montero. Luka Montero. E sim, eu lembro de você.
— Nossa, você está bem diferente.
— É, as pessoas mudam... mas você continua igual.
— É, não consegui me desfazer de Brígida. E você, pelo visto, também não.
— Mas não por escolha própria — responde Luka, em tom frio.
O silêncio pesa.
Desde criança, Luka não se dava bem com as pessoas de Brígida. Até as crianças tinham medo dele, por causa de seus sonhos estranhos e das histórias macabras sobre a linhagem dos Skavronski. Só seus amigos — Emili, Caleb, Henrique, Enzo, Lívia e Jacob — o aceitavam.
Eles eram inseparáveis, conhecidos por suas travessuras que viravam Brígida de cabeça para baixo. Mas, com o tempo, tudo mudou. Luka sempre teve dificuldade em se aproximar dos outros — o medo que o cercava, somado aos rumores sobre sua família, criava um muro invisível à sua volta.
— Então, o que estão fazendo aqui? — pergunta Jacob.
— Estou levando Luka para ver a bruxa — responde Merry.
— A bruxa? Por quê?
— Não importa. É perda de tempo mesmo — Luka retruca, com indiferença.
— Não ligue, ele não acredita nessas coisas — diz Merry.
— Ok, mas... se estão indo para a bruxa, estão indo para o lado errado. Ela mora pra lá — diz Jacob, apontando para o monte Zmiya.
— Huf... ótimo — murmura Luka, irritado.
— Mas se quiserem, posso levá-los. Eu e a turma vamos pro lago Zelenyy amanhã à tarde, fica perto de lá. Podem vir conosco.
— Seria ótimo — diz Merry.
— Não seria não — retruca Luka, com sinceridade e tédio.
— Bom, então passo aqui amanhã pra buscar vocês.
— Combinado! — diz Merry, sorrindo.
Eles se despedem. Luka, por outro lado, apenas acena com frieza.
Quando crianças, Luka e Jacob eram melhores amigos. Para Jacob, era estranho ver o antigo companheiro tão distante. Mesmo após nove anos, ele esperava uma reação calorosa. Mas Luka havia mudado. E Jacob sabia o motivo: Luka odiava Brígida — não apenas pelos pesadelos ou pela infância solitária, mas também pelo pai que enganou a mãe e a abandonou doente.
Enquanto o pai vivia confortavelmente em Tóquio com outra família, Luka, aos quinze anos, lutava para sustentar e cuidar da mãe com câncer, tendo deixado até os estudos para isso. Shofi e Camila o ajudaram como podiam, mas ele foi forçado a se tornar adulto cedo demais.
— Luka precisava tratá-lo assim? — pergunta Merry.
— Assim como?
— Você sabe... vocês eram tão próximos.
— Huf... isso faz muito tempo, tia.
— Não faz tanto tempo.
— Nove anos de sobrevivência é o bastante pra mudar alguém, tia.
Ele encosta a testa no vidro da janela, perdido em pensamentos antigos — lembranças doces de uma época em que danones e biscoitos amanteigados resolviam todos os problemas. Os mesmos biscoitos que sua mãe fazia com tanto amor. Agora, tudo parecia distante. O sabor da inocência havia morrido junto com ela.
No final do pôr do sol, eles voltam para casa. Camila e Shofi já haviam preparado a mesa com uma linda refeição: sopa com pão de alho, bife acebolado, batatas fritas, salada colorida e rodelas de laranja decorando os pratos.
— Nossa, que mesa bonita!
— Muito obrigada! — responde Shofi, orgulhosa.
— É, minha garota arrasa na cozinha — diz Luka, abraçando-a pela cintura e lhe dando um beijo.
— Obrigada, meu amor.
— Então, vamos comer?
— Vamos!
— E aí, como foi? — pergunta Camila.
— Não foi.
— Como assim?
— Estávamos indo pro lado errado e acabamos encontrando o Jacob no caminho.
— Jacob? O Jacob Lachovicz?! — pergunta Camila, surpresa.
— Sim, o amigo do Luka.
— Você não fala com ele há nove anos!
— É, éramos amigos.
— Por quê “éramos”?
— Porque a vida é triste. Me passa o pão, Camila?
— Claro.
Depois do jantar, todos vão dormir.
Luka, apavorado como sempre, se senta na cama, tocando alguns acordes na guitarra. Sua mente vagueia para o passado — por que ele e Jacob, que eram inseparáveis, se tornaram estranhos? Talvez o tempo tenha decidido por eles. Luka suspira, deita-se de barriga para cima e encara o teto.
O sono o envolve lentamente. A temperatura cai de repente. O quarto escurece, e o ar parece denso, pesado, quase sólido. Luka dorme profundamente, mas algo começa a chamá-lo.
(Luka... Luka... Luka...)
A voz é suave, mas ecoa em todas as direções. Ele se debate na cama, os olhos se movem sob as pálpebras fechadas.
De repente, ele acorda com um solavanco. Seus lábios estão arroxeados, a pele pálida, e cada respiração forma nuvens brancas no ar gélido. A janela está aberta — e flocos de neve entram no quarto, cobrindo o chão.
Lentamente, ele se levanta. O vento corta sua pele. O chão de madeira range sob seus pés descalços. Ele dá alguns passos... até ouvir o som seco do gelo se quebrando sob si.
O mundo silencia.
Então o gelo cede.
CRACK.
Luka despenca — e é engolido pelas águas negras e geladas. O frio corta como navalha. A escuridão o envolve. No fundo, algo se move.
Entre as sombras aquáticas, surge uma figura: cabelos ruivos flutuando como chamas submersas, pele escura e olhos amarelos que brilham como os de uma serpente. A criatura sorri. Um sorriso impossível, grotesco. E então abre a boca — uma fenda desumana cheia de dentes pontiagudos.
Um som horrendo, primal, ecoa na água. Não é um rugido — é um grito de desespero, de dor e fome.
Luka se debate, tentando subir, mas mãos frias o agarram pelos tornozelos e o puxam para o fundo. Ele grita, a voz distorcida pelas bolhas.
Consegue emergir por um instante — está agora num rio congelado de cor verde. O gelo o corta, o vento o esbofeteia.
— SOCORRO! ALGUÉM!? SOCORRO, POR FAVOR! — berra, arrastando-se sobre o gelo molhado e rachado.
Algo o puxa de volta. O som dos estalos do gelo é abafado por outro grito — o da criatura, vindo das profundezas. Ele tenta lutar, mas está sem forças. A água o engole novamente.
Seu corpo cede. A mente escurece. Ele apenas boia, inerte, entre o frio e o esquecimento.
— Ei! Você está bem?! — uma voz distante ecoa.
— Consegue me ouvir?! Ei! — é a última coisa que escuta antes de desmaiar.
Quando recobra a consciência, está deitado em uma cama, coberto com três cobertores de pele. Uma compressa quente repousa sobre sua testa.
— Hm... minha perna... aaagh... — murmura, com a voz rouca pela garganta queimada pelo frio. — Onde... onde eu estou?
De repente, a porta se abre. Um rapaz alto, de cabelos pretos amarrados, botas de couro e orelhas cheias de brincos entra no quarto.
— Finalmente acordou. Você quase morreu, sabia?
— O... o quê?
— Qual é o seu nome?
— Eu sou Luka.
— Luka? Luka Skavronski?! — diz, surpreso.
— Montero...
— Claro, só um idiota como você pra tomar banho no rio Zelenyy a essa hora.
— Espera... você me conhece?
— Sim.
— Quem é você?
— Henrique.
— Henri... Henrique Maksym?!
— Você ainda se lembra! Achei que tivesse esquecido dos pobres depois de fugir pra Nova York com seu papai rico — provoca Henrique, com sarcasmo.
— Parece que não sou o único idiota aqui — rebate Luka.
— Olha, não é assim que se agradece a quem te salvou depois de quase morrer afogado — diz, com um sorriso debochado.
— Hup... obrigado — Luka tenta se levantar, mas a pressão cai e ele quase desmaia. Henrique o segura pela cintura.
— Ei! Cuidado.
— Ainda me sinto fraco...
— Tudo bem. Acho melhor descansar. Vou ligar pra sua tia, avisar que você está bem.
— Obrigado... — Luka aceita a xícara quente que Henrique lhe entrega. O aroma de frutas vermelhas sobe no ar.
Ele leva o líquido à boca. O sabor doce e amargo do chá o aquece por dentro.
Henrique o observa em silêncio, olhando para o movimento lento de Luka, para o modo como ele lambe os lábios.
— Hum? Algum problema? — pergunta Luka, sem entender o olhar.
— Não é da sua conta.
— Babaca... — murmura, baixo.
Luka volta a encarar o chá — vermelho como sangue. De repente, a lembrança da criatura o invade: os olhos amarelos, os dentes afiados, o som do grito sufocado sob a água...
Ele se perde tanto nos pensamentos que nem ouve Henrique chamá-lo.
— Luka... Luka... LUKA, CARALHO!
— Hã?! O quê?
— Finalmente! Sua tia tá vindo te buscar!
— Ah... ok, valeu.
Minutos depois, Merry chega desesperada, as lágrimas descendo.
— LUKA! — Ela o abraça com tanta força que ele mal respira.
— Aaagh... t-tia... —
— Sim, meu amor?
— Não respiro...
— Ah! Desculpe! Luka, como isso aconteceu?
— Eu... eu não faço ideia.
— Chega! Eu vou te levar naquela bruxa, mesmo que você diga que não!
— Tudo bem, tia. Eu concordo.
— Então... você aceita ir?
— Sim.
— Que bom...
Antes de irem, Luka e Henrique trocam números.
No caminho de volta, Luka se perde em pensamentos. Como podia ter ido parar no lago Zelenyy sem sequer sair de casa?
Se foi um sonho... como explicaria o frio que ainda queimava sua pele? Ou o cheiro do rio em suas roupas?
Nada fazia sentido. Nenhuma lógica, nenhuma razão poderia explicar.
E, pela primeira vez, Luka sentiu medo de si mesmo.
Fim...
Capítulo 03
Depois do que aconteceu com Luka, ele foi levado para o hospital, onde recebeu tratamento por alguns ferimentos no corpo e um machucado profundo no pé direito.
— Olá, em que posso ajudar? — pergunta a enfermeira, segurando uma prancheta.
— Vim fazer alguns exames no meu sobrinho. Ele se machucou e parece estar com febre alta — diz Merry, visivelmente preocupada, apoiando as mãos no balcão.
— Claro... qual o nome do paciente?
— Luka, de... — começa Merry, mas é interrompida por Henrique.
— Skavronski. Luka Skavronski — responde ele com um olhar sério para a enfermeira.
— Henrique, Luka vai ficar bravo comigo...
— E por quê? Esse é o nome dele, não é?
— Sim, mas...
— Merry, não pode continuar mimando o orgulho do Luka. Ele precisa aceitar que é ucraniano, e que o sobrenome dele é esse!
— Hm? — Merry o olha confusa, mesmo sabendo o motivo da revolta.
Luka sempre se recusou a usar o sobrenome Skavronski — o nome do pai que tanto odiava. A família era temida por seus negócios obscuros com a máfia americana. Mesmo que muitos achassem serem apenas boatos, Luka sabia que era verdade. Por isso, repudiava tudo e todos ligados àquele nome.
Ele rejeitava qualquer bem ou herança da família paterna. Odiava o pai com todas as forças — não apenas por causa da morte da mãe, mas por toda a infelicidade que ele causara.
Camila e Luka eram irmãos por parte de pai. Tinham mães diferentes. Camila, a mais velha, era filha de Jade — ex-amiga da mãe de Luka e também a primeira amante de Caio, o pai deles.
Luka descobriu a traição aos seis anos, quando viu o pai e sua madrinha em um momento íntimo no escritório — enquanto sua mãe estava de cama, doente. Depois daquilo, começou a investigar o pai por conta própria e acabou descobrindo que Camila, sua melhor amiga de infância, era na verdade sua irmã.
Foi um choque. Uma descoberta dolorosa demais para uma criança. E ele guardou tudo em silêncio, temendo que a verdade destruísse Angélica, sua mãe — uma mulher pura, bondosa e sempre sorridente. Mesmo com tudo, ela nunca tratou Camila mal. Era carinhosa e acolhedora com todos.
Apesar de tudo, Luka e Camila continuavam próximos. Nenhum dos dois permitiu que os pecados do pai arruinassem o vínculo entre eles.
— Huf... ok então. Pode ficar de olho nele enquanto preencho esses documentos? — pede Merry.
— Claro — responde Henrique, pegando sua jaqueta e indo até o quarto onde Luka era atendido pelo médico.
— Hm... os batimentos estão normais, a pressão equilibrada e os reflexos bons — diz o médico, examinando Luka.
— Então não há nada de errado com ele? — pergunta Henrique, entrando pela porta.
— Não, nada grave. Apenas queimaduras causadas pelo gelo seco. O ferimento no pé é o que mais precisa de atenção — responde o médico, guardando os instrumentos.
— Valeu, Caleb — agradece Henrique, apertando-lhe a mão.
— Caleb? — Luka diz, surpreso, deitado na cama, recebendo soro.
— Sim... você me conhece?
— Não... deixa pra lá.
— É claro que conhece! É o Luka! — diz Henrique.
— Luka?! Luka Skavronski...
— Montero — corrige ele, seco.
— Luka! Nossa, foram só nove anos, mas parece uma eternidade!
— Digo o mesmo — responde Luka, contido.
Caleb o abraça animado, ignorando o jeito frio do amigo. Caleb sempre fora assim — não ligava para o temperamento difícil de Luka nem para as brigas com Henrique. Era carismático, leal e gentil com todos, o que fazia Luka respeitá-lo desde o início. Ele nunca se importou com os boatos sobre a família Skavronski.
— Não acredito! Os Valentes estão de volta! — diz Caleb, rindo.
— Você ainda chama a gente assim?
— É claro que chamo!
— Luka é o mais novo da turma, mas é mais adulto que você, Caleb — provoca Henrique, encostado na parede.
— Hahaha, verdade! — ri Caleb.
Luka dá um meio sorriso.
— Qual o problema? — pergunta, notando o olhar de Henrique sobre ele.
— Nada... é só que não via você sorrir desde que chegou aqui.
— Idiota — resmunga Luka, ainda com um leve sorriso.
— Não posso te culpar. Você mudou muito desde que foi embora.
— Isso até pode ser verdade, mas ele ainda é o nosso lindo e adorável Luka — diz Caleb, saindo da sala e fechando a porta.
— Ele continua o mesmo — comenta Henrique.
— É... algumas pessoas não mudam — responde Luka. — Mas fico feliz por ver que ele continua sendo uma boa pessoa. Ver o quanto cresceu é realmente bom.
— Você fala como se ligasse.
— E quem disse que eu não ligo?
— Eu disse.
— Você não sabe nada sobre mim.
— Então para de agir como se ninguém fosse importante! — diz Henrique, erguendo o tom.
Luka o encara, irritado.
— Olha só quem fala! Você não respeita nem a vida dos outros e ainda quer opinar sobre a minha? — rebate, surpreso quando Henrique se aproxima e apoia uma das mãos na cama, inclinando-se sobre ele.
— Só pra você saber, eu respeito sim a vida das pessoas. Mas você é quem não respeita a própria.
— É claro que respeito!
— Ah, é? Então por que nega tanto o seu sobrenome? — Henrique se aproxima ainda mais, encostando os lábios quase no ouvido de Luka e sussurrando, com uma voz rouca e provocante: — Então, Skavronski...?
— O... o quê...?
— Quem é que não tem respeito por si mesmo aqui, hein? —
Henrique se aproxima lentamente. Tão perto que Luka sente o calor da respiração dele roçar seus lábios. O coração de Luka acelera. Aquilo o confunde — e o atrai ao mesmo tempo. Ele não sabia o que Henrique pretendia, mas, por um instante, decide não recuar.
Antes que qualquer coisa aconteça, Merry entra no quarto.
— Luka, o médico disse que você estava melhor! — diz ela, e Henrique se afasta imediatamente.
— Henrique, você ainda está aqui?
— Sim. Vim me despedir desse idiota.
— O único idiota aqui é você — rebate Luka.
— Claro... muito obrigado por ajudar o Luka, Henrique.
— Não foi nada.
— Bom, quero te agradecer com um jantar lá em casa.
— Não precisa...
— Eu aceito — diz ele, sorrindo. — Se não for um incômodo pro seu sobrinho.
— O que acha, Luka?
— Hm... — Luka parece distante, ainda pensando no que quase aconteceu.
— Luka?
— O quê?
— O que acha?
— Tanto faz.
— Então está combinado.
— Huh... então tchau, Merry — diz Henrique, lançando um olhar perigoso a Luka e um sorriso de canto. — Tchau, Skavronski.
— Vai se ferrar.
— Huhum. — Ele sai, fechando a porta.
Logo em seguida, Shofi entra no quarto e o abraça, chorando.
— Luka... meu amor... — soluça entre lágrimas.
— Ai... minha linda... calma... —
— Desculpa — diz ela, enxugando o rosto.
— Agora você vai deixar de teimosia e vai logo à bruxa, não vai? — diz Camila, entrando com uma bolsa no braço.
— Não...
— Vai sim! Isso pra mim foi a gota d’água — diz Merry, furiosa.
— Tia...
— Nem adianta. Amanhã o Henrique disse que pode nos levar.
— Claro, ele não podia ficar quieto, tinha que se meter na minha vida.
— Luka, ele só está tentando ajudar.
— Eu não me lembro de ter pedido ajuda.
— Luka, não adianta discutir. Nós vamos, e ponto final.
— Hm... — Luka faz uma expressão de raiva. — Façam o que quiserem. — Ele se vira para o outro lado da cama.
— Vamos, Shofi.
— Tchau, amor.
— Huf... tchau.
Luka permanece deitado, virado para a parede, até que todas saem do quarto. Então, vira-se e fica encarando o teto, sentindo-se culpado pelo comportamento com Merry. Mas, ainda assim, estava determinado a não alimentar mais aquela loucura que o perseguia nos sonhos.
Ao cair da tarde, come uma sopa sem gosto. A única coisa boa era o pudim de creme da sobremesa. Depois, toma alguns analgésicos e fica olhando para o teto até apagar lentamente.
O frio o desperta.
Luka abre os olhos — está deitado sobre um chão úmido de terra, no meio de uma floresta escura. A neblina é tão densa que ele mal consegue ver os próprios pés.
O ar é pesado, o vento sussurra entre as árvores, e um cheiro podre de madeira molhada o envolve.
Cada passo que ele dá faz o som da lama se misturar ao de algo rastejando por perto.
O silêncio é antinatural. Nenhum grilo. Nenhum pássaro. Só o som de sua respiração — e o próprio coração batendo alto demais.
Algo o observa entre as sombras.
Estava frio. Luka estava descalço, no meio do nada, com a temperatura baixíssima. Ele olhava em volta, confuso, sem entender o que estava acontecendo. Encolheu-se, tremendo de frio, e começou a seguir uma trilha estreita entre as árvores.
O vento cortava o ar, balançando as folhas e levando-as consigo. A floresta estava calma, silenciosa — o único som audível era o do vento. Luka andava devagar, tentando manter a calma, mas o medo começava a crescer dentro dele.
De repente, viu uma enorme árvore no meio da trilha, bloqueando totalmente o caminho. Sem pensar muito, tentou subir nela para passar para o outro lado. Mas escorregou.
Quando se levantou novamente, sentiu um arrepio percorrer-lhe a espinha. Atrás dele, estava uma criatura encapuzada, de longos cabelos vermelhos e olhos amarelos que brilhavam no escuro.
De trás da criatura surgiram dois enormes lobos, dentes à mostra, babando de raiva. Cada um tinha um dos olhos completamente branco. Luka ficou paralisado de medo — e seu único reflexo foi correr.
Ele pulou da árvore e disparou floresta adentro. Corria sem direção, desviando das árvores, o coração acelerado, o ar queimando em seus pulmões. Quando olhou para trás, viu os lobos se aproximando — rápidos, famintos.
Luka continuou correndo até chegar a uma parte tomada por gravetos secos. Eles arranhavam sua pele, rasgavam sua roupa e se enroscavam em seu cabelo. Desesperado, ele se debatia tentando se soltar.
Tonto e apavorado, tropeçou no próprio pé e caiu no chão úmido e frio. Tentou se levantar, mas o solo começou a se mover. A terra grudava em seu corpo, puxando-o para baixo.
— N-não... — murmurou, tentando escapar.
Quanto mais se debatia, mais o chão o sugava, viscoso e pegajoso como cola. Luka gritou, mas o som foi engolido pelo nada. Então tudo escureceu.
Quando abriu os olhos, estava novamente no quarto do hospital. Tudo parecia normal — exceto por um detalhe: ele não conseguia se mexer nem falar.
Seu corpo estava rígido, imóvel. O pânico começou a tomar conta, mas ele tentou se convencer de que era apenas mais um sonho.
A porta do quarto estava entreaberta. Luka fixou o olhar nela — e, lentamente, uma mão pálida, da cor de um cadáver, apareceu empurrando a porta. As unhas eram compridas e sujas.
A respiração de Luka ficou pesada. Suava frio, tentando, em vão, mover um músculo sequer.
A porta se abriu completamente. O corredor estava vazio.
Por um instante, silêncio total.
Então, o som de ossos se quebrando ecoou pelo quarto. De repente, um corpo despencou do teto, caindo sobre Luka. Era uma criatura deformada, o corpo retorcido, as articulações quebradas em ângulos impossíveis.
Ela se contorcia em cima dele, enquanto Luka lutava para se mover, apavorado. A entidade virou-se de barriga para cima, os braços esticados e as pernas dobradas para trás. Aproximou o rosto do dele, tão perto que Luka pôde sentir o cheiro podre que saía de sua boca — o fedor de carne morta.
A criatura sorriu, um sorriso que faria qualquer um perder a sanidade, e sussurrou:
— Luka... venha até mim... hahaha...
Luka tentou gritar, mas nenhum som saiu. Tentou se mover, mas o corpo não obedecia.
— Luka!? LUKA! — Henrique gritava, desesperado, enquanto o via se debatendo na cama.
O corpo de Luka tremia, os olhos revirados, murmurando algo em latim.
— Haaam... — Luka acordou de súbito, suando frio, completamente confuso.
— Luka... aagh! Meu braço! — gritou Henrique, sentindo dor.
Luka olhou para o braço dele e percebeu que, enquanto dormia, havia cravado as unhas no amigo, fazendo-o sangrar.
— Aahh... m-me desculpa! — disse, trêmulo, tirando rapidamente a mão.
— Hm... o que... porra foi essa!? — gritou Henrique, furioso.
— Eu tive... um ataque de convulsão enquanto dormia. Isso é normal quando se tem problemas respiratórios — justificou Luka, cruzando os braços como se tivesse razão.
— Não fode! Ninguém nesse mundo teria uma convulsão assim! — rebateu Henrique, segurando o braço ensanguentado.
— Huuuf... cala a boca e vem aqui antes que isso infeccione — disse Luka, levantando-se e pegando alguns curativos. — Vem, me dá o braço. — sentou-se numa cadeira, esperando.
— Não pedi a sua ajuda.
— É, e eu também não pedi a sua, mas olha só onde estamos — provocou Luka, soltando uma risadinha.
Henrique bufou, mas acabou cedendo.
— Tá... — estendeu o braço, apoiando-o nas pernas de Luka.
Luka começou a limpar o ferimento com algodão e álcool. Seus movimentos eram precisos e cuidadosos. Após retirar o sangue, passou uma pomada e aplicou as ataduras com perfeição.
Enquanto Luka se concentrava no curativo, Henrique o observava em silêncio — cada traço do rosto, a pele pálida, o contorno dos lábios rosados, os olhos azuis e intensos, os cílios longos e escuros. Reparou no cabelo preto, desbotado, com pontas ainda azuladas. Cada detalhe parecia fasciná-lo.
Olhou para as mãos dele — finas, de unhas curtas pintadas de preto, o esmalte descascando. Henrique pensou, distraído: O que eu poderia fazer com tudo isso?
Sem perceber, levantou a mão e tocou o rosto de Luka.
— Hm? Henrique, o que você tá fazendo? — perguntou Luka, confuso.
Henrique não respondeu. Apenas se aproximou, lentamente, até seus rostos ficarem quase colados. Os lábios estavam tão próximos que quase se tocavam. Eles se olharam nos olhos — o ar parecia suspenso entre eles.
Estavam prestes a se beijar quando Caleb bateu na porta.
— Grrr... — Henrique soltou um grunhido frustrado, pensando: Alguém tinha que atrapalhar.
Trocaram um olhar rápido de decepção. Henrique levantou-se e abriu a porta.
— Olá, Luka! Como foi a noite? — perguntou Caleb, com uma prancheta na mão.
— Bem, na medida do possível.
— Claro... e, Henrique, o que aconteceu com o seu braço? — perguntou, apontando com a caneta.
— Luka me machucou por acidente enquanto dormia. —
— Eu não machuquei! Tive uma convulsão! — retrucou Luka.
— Uma convulsão enquanto dormia? — Caleb franziu o cenho e começou a checar os exames. — Melhor eu fazer um pequeno exame só pra garantir.
Depois de medir temperatura, pressão e batimentos, ele anotou:
— Aparentemente está tudo normal.
— Viu só? — disse Luka, satisfeito.
— É, normalíssimo — ironizou Henrique. — Cravar as unhas no braço dos outros e gritar em latim. Coisa leve.
— Pura merda! Lá vem ele de novo se metendo na minha vida! — Luka levantou o tom.
— Nossa! A verdade dói, né? — retrucou Henrique.
— Você realmente não sabe cuidar da própria vida sem se intrometer na dos outros!?
— Pelo menos eu consigo dizer meu verdadeiro sobrenome.
— Cuida da sua vida enquanto ainda pode! — rebateu Luka, com olhar frio e furioso.
— Hm... você quem sabe. — Henrique saiu batendo a porta.
— Idiota... — murmurou Luka.
— Ai, ai... vocês dois ainda vão se matar um dia — comentou Caleb, rindo enquanto escrevia.
— Isso não faz sentido nenhum.
— Eu sei — respondeu Caleb, sorrindo.
Mais tarde, Luka recebeu alta. Merry o levou para casa, onde as meninas prepararam um jantar delicioso: costela assada com batatas, cebola, arroz, salada colorida e laranjas decorando a mesa.
Depois de um dia inteiro com a comida sem gosto do hospital, Luka estava radiante ao sentir novamente o sabor da carne. Mas, mesmo assim, o pensamento do que quase aconteceu com Henrique ainda o atormentava.
Até onde aquilo teria ido? — pensava.
E ele não era o único. Henrique, deitado em sua cama, também pensava no mesmo. O momento entre eles fora intenso — e tentador demais. Luka, porém, sabia que precisava se conter. Gostava de alguém, e respeitava isso.
Mais tarde, ele pegou sua guitarra e começou a tocar alguns acordes, tentando relaxar, até ouvir batidas na porta.
— Tá aberta.
— Oi, amor. Tá tudo bem? — perguntou Merry, entrando.
— Tá sim, tia. — Luka deixou a guitarra de lado.
— É melhor não ficar acordado até tarde. Vamos levantar cedo amanhã.
— Hm? Por quê?
— Amanhã o Henrique vai nos levar até a bruxa.
— Henrique... claro. Tinha que ser ele. Mais uma vez, se metendo na minha vida.
— Ele só está tentando ajudar.
— Jura? Porque eu não me lembro de ter pedido ajuda!
— Luka! Pare de implicar com ele! Está ajudando desde que chegamos. E chega de teimosia — nós vamos, e já está decidido! — disse Merry, levantando-se. — Boa noite.
— Huuuf... saco... — Luka jogou-se na cama, exausto.
Com medo dos pesadelos, ele fechou a porta, as janelas e o guarda-roupa. Colocou um despertador para tocar a cada quatro minutos — o suficiente para impedi-lo de cair num sono profundo. Já estava acostumado com isso, como fazia nos longos turnos de Nova York.
Na manhã seguinte, Luka acordou cheio de energia. Tomou banho, trocou de roupa, pegou a muleta e foi direto para a cozinha. Preparou um café, fritou ovos com bacon, fez salada de frutas, tapioca com presunto e queijo, e um suco natural de laranja.
Depois de limpar a bagunça, animou-se e acabou limpando a casa inteira. Varreu a varanda, juntou as folhas e organizou tudo. Estava em paz — até ver o carro de Henrique se aproximando.
— Não deveria estar se esforçando tanto — disse Henrique, descendo do carro.
— Não lembro de ter pedido sua opinião.
— Bom dia pra você também, Skavronski. — Ele passou a mão pelos cabelos lisos e jogou-os para trás. — Vai, senta aí. Eu termino pra você.
— Ai... não precisa.
— Não tô pedindo. Cala a boca e senta. — empurrou-o suavemente na cadeira.
Henrique levou as coisas que faltavam, arrumou a mesa com perfeição e sentou-se ao lado de Luka.
— Nossa, você limpou a casa inteira?
— É uma boa observação.
— É incrível como você é frio sempre.
— E eu acho incrível como você adora interferir na vida dos outros.
— Tá, tá... mas falando sério... aquilo do hospital... não foi uma convulsão, foi? — perguntou Henrique, encarando-o.
— Você ainda tá pensando nisso?
— Não me responde com outra pergunta.
— Já disse que não foi nada. Tive uma convulsão, só isso. — respondeu Luka, irritado.
— Nossa... você mente até morrer, mas não admite, né?
— Se acha que tô mentindo, pra que pergunta?
— Ainda tinha esperança de ouvir a verdade.
— E que verdade você quer que eu diga, hein?
— Sei lá! Tipo: “Sim, Henrique, você estava certo. Não foi uma convulsão. Eu ainda tenho meus sonhos bizarros. E sim, eu sou um idiota teimoso e egocêntrico.” — ironizou Henrique, imitando a voz dele.
— O quê?! Eu não falo assim! — protestou Luka, segurando o riso.
— Fala sim.
— Não falo! E eu não faço assim com as mãos!
— Faz sim.
— Não faço!
— Fez agora. Mas voltando ao assunto — disse Henrique, voltando ao tom sério. — Você ainda tem aqueles sonhos, não tem?
— De novo esse assunto?! Henrique, eu não sei o que você quer ouvir! — Luka já estava exaltado.
— Por que você não pode ser sincero?
— E por que você fica sempre se metendo nos meus problemas?!
— Talvez porque você reclama de barriga cheia!
— Lá vem! Você não sabe absolutamente nada sobre mim, então não vem dizer o que não sabe!
— Tá bom então! Diz você, filhinho do papai: quais são seus problemas? Papai bloqueou seu cartão?
— Não! Sabe quais são meus problemas? — Luka explodiu. — É que eu me mato de trabalhar, fazendo turnos intermináveis pra ganhar uma miséria. Desisti de tudo pra manter minha mãe viva, ligada a máquinas, enquanto o meu “pai” mora numa cobertura de 50 mil em Tóquio com a nova família! E ainda tenho que aguentar esses sonhos infernais que me perseguem! —
Luka segurou as lágrimas, respirando fundo. — Então sim, Henrique, minha vida é um lindo e perfeito inferno!
Henrique ficou em silêncio por um momento.
— ...Desculpa. Eu sinto muito.
— Não precisa. Não é culpa sua. —
Henrique pousou a mão sobre a de Luka, que o olhou, surpreso.
— Mesmo assim... eu sinto muito, Luka — repetiu ele, aproximando o rosto.
Os dois se encararam. As respirações se misturaram. Luka, impulsivamente, deu um beijo rápido nele.
Henrique, surpreso, reagiu. Puxou-o pela nuca e o beijou intensamente. Os lábios se encaixaram, o beijo se aprofundou, molhado, intenso. Luka correspondeu, gemendo baixinho. Henrique mordeu-lhe o lábio inferior, puxando-o. Luka abriu a boca, e as línguas se entrelaçaram.
Quando finalmente pararam para respirar, ainda estavam colados, rostos vermelhos e respiração ofegante. Luka escondeu o rosto no ombro dele, corado.
— Depois... a gente continua — sussurrou Henrique, com voz rouca, dando uma mordida suave em sua orelha.
Foram interrompidos por Merry e as meninas, que finalmente haviam acordado.
— Bom dia, meninos! — disse Merry, sorridente.
— Oi, tia.
— Bom dia, meu amor — disse Shofi, sentando-se no colo de Luka.
— Oi, dormiu bem, minha linda? — perguntou ele, beijando-lhe o rosto.
— Sim! E você?
— Também.
— Sério?
— Sim.
— Então vamos logo! Quero muito ver a bruxa! — disse Camila, animada.
— Vocês vão junto? — perguntou Luka, mordendo uma torrada.
— Dã! Vamos ver uma bruxa! Quem não quer?
— Ah... eu não quero.
— Você não é importante.
— Obrigado, maninha.
— De nada, maninho.
Fim.
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