Sombra na mira

Isabela estava de volta. Mas não era mais a mesma que desceu o morro dias atrás, assustada, em choque com a realidade crua que a envolvia. Agora, ela subia a viela estreita com a postura de quem não se dobra fácil, o olhar frio e a respiração contida. O salto alto ressoava como um desafio, e o vestido preto justo delineava sua ousadia silenciosa.

Ela não era dali. E fazia questão de deixar isso claro. Mas, ao mesmo tempo, algo naquela guerra a puxava de volta. Era Kael. Era o que estavam escondendo dela. Era o sangue que pingava invisível em cada esquina.

Kael a viu primeiro da laje, de cima, como um lobo farejando o retorno da presa mais difícil. Ela vinha com os cabelos soltos, uma bolsa grande no ombro, e sem medo no olhar. Um olhar que queimava.

Desceu rápido os degraus e encontrou com ela no beco. Os olhos se cruzaram, e o clima denso os engoliu.

— Tá fazendo o quê aqui de novo? — ele perguntou, a voz firme, mas com um traço involuntário de preocupação.

— Vim buscar resposta. E não tô com paciência pra rodeio hoje, Kael.

Ele franziu o cenho, olhando em volta discretamente. O morro não era lugar de diálogo calmo. Ainda mais quando alguém como ela pisava de novo ali. Aquilo chamava atenção. E ele sabia disso.

— Você veio sozinha?

— Vim. E saio também, se quiser. Mas só depois que você falar a verdade.

Kael cerrou os punhos. A sinceridade dela incomodava. A coragem… mais ainda.

— Sobe — ele murmurou. — Antes que alguém te veja aqui embaixo.

Ela o seguiu, ignorando os olhares de alguns rapazes que pararam o que faziam ao vê-la passar. Alguns sorriram, outros só observaram. Mas todos sabiam: quem se metesse ali, metia com Kael.

Na casa simples onde ele vivia — laje descoberta, sala de sofá gasto, cheiro de cigarro e concreto — Isabela entrou como se fosse dela. Sentou-se no sofá, tirou os óculos escuros e encarou.

— Alguém me seguiu. E não foi qualquer um. Era gente profissional. Acha mesmo que eu não perceberia?

Kael gelou. Aquilo mudou o jogo.

— Quando?

— Hoje. Saí de casa e percebi. Dois homens. De longe. Mas estavam sincronizados. E não eram da imprensa. Não eram curiosos. Eram frios. Acompanhavam tudo, cada passo. Você sabe o que isso significa?

Kael respirou fundo. Puxou o celular do bolso, bloqueou a tela. Silêncio.

— Isso significa que tão cavando fundo demais — ele disse, a voz agora mais grave. — E isso… pode matar você.

— Já tão tentando, né? — ela respondeu com sarcasmo. — Desde o dia que eu me meti nessa história.

Kael se aproximou, abaixando-se na frente dela. Os olhos colados nos dela.

— Escuta, boneca. Isso aqui não é novela da Globo. Isso aqui é favela, guerra, sangue. Eu tô segurando muita coisa. Gente tá morrendo pra te proteger. E você vem aqui bancar a valentona?

— Você acha que eu pedi isso?

— Não. Mas agora cê tá no meio. E eu também tô.

Isabela ficou em silêncio por alguns segundos. Kael a olhava como quem via um furacão e uma flor no mesmo corpo. Era atração. Mas também era raiva.

Ela quebrou o silêncio com firmeza.

— Eu não volto mais pro meu apartamento. Tão me vigiando. E se querem me atingir, vão tentar por você.

Kael levantou. Passou as mãos pelos cabelos e andou até a porta, olhando o beco pela fresta. Depois trancou com força. Voltou pra ela.

— Vai dormir aqui essa noite.

— Vai dormir comigo?

— Eu durmo onde quiser, boneca. Mas por agora, só quero saber o seguinte: você me contou que foi seguida. Mas contou pra mais alguém?

— Não. Só você.

— Então escuta. Amanhã eu vou levar você pra outro lugar. Mais seguro. Aqui já tão de olho demais.

Ela ficou quieta. A intensidade da situação, o cheiro dele tão perto, o coração acelerado. A tensão era tanta que quase fazia a pele queimar.

— Por que tá fazendo isso, Kael? — ela perguntou, num sussurro. — Por que você se importa tanto?

Ele se aproximou de novo. Devagar. Sentou-se ao lado dela no sofá, os joelhos se tocando. O olhar firme, mas com a voz baixa.

— Porque quando você apareceu aqui com aquela cara de patricinha metida… eu achei que ia ser só mais uma. Mas aí eu vi o fogo. Vi a raiva. Vi o passado nos teus olhos. E… boneca… eu sou feito de ferida. E reconheço uma quando vejo.

Isabela engoliu seco. O silêncio tomou conta. O desejo flutuava entre os dois. Quase visível.

Ele esticou a mão e passou os dedos na linha do maxilar dela. Ela fechou os olhos por um instante, arrepiada.

— Você confia em mim? — ele perguntou.

— Eu nem confio em mim mesma.

Kael sorriu de canto. Um sorriso cruel, cansado.

— Então a gente vai se dar bem.

Sem aviso, ele a puxou pela cintura, colando os corpos. O beijo não veio. Ainda não. Mas os lábios ficaram perigosamente próximos. Ela podia sentir a respiração dele, o gosto da tensão. Os olhos mergulhados nos dela.

— Se quiser fugir agora, é sua chance — ele disse.

— Se eu quisesse fugir, não tinha voltado — ela respondeu, firme.

E aí sim, o beijo aconteceu.

Foi um beijo urgente, amargo, com gosto de ameaça e desejo. Ela segurou no rosto dele, ele apertou a cintura dela. O sofá virou ringue. Mas antes que o clima escalasse demais, Kael parou. Olhou em volta.

— Tem coisa errada — murmurou, de repente.

— Como assim?

— Silêncio demais. Lá fora. Os moleques sempre tão fazendo barulho. Cadê eles?

Ele se levantou num pulo, puxou uma pistola de dentro do armário e foi até a porta. Abriu uma fresta. Nada.

Isabela ficou parada, coração disparado. Sentia o perigo no ar.

Kael fechou a porta devagar.

— Vem cá — disse ele, indo até ela e puxando pela mão. A conduziu até um quarto nos fundos, trancou a porta e puxou um baú do chão. Dentro, um alçapão improvisado.

— Se der ruim, você entra aí. Não discute.

— Kael…

— Não discute.

Ele voltou pra sala, olhando pelas frestas da janela. E foi aí que viu: dois homens parados no fim da viela. Os mesmos que Isabela descreveu? Talvez. Mas ali não era lugar pra dúvida.

O telefone dele vibrou. Era Leo, um dos soldados da quebrada.

Mensagem:

"Tão perguntando por ela. Dois caras de fora. Tão armados. Quer que resolva?"

Kael respondeu na hora: "Não. Espera meu sinal. Se eles subirem, derruba."

Voltou pro quarto. Isabela estava de pé, assustada.

— Fica aqui. Não abre pra ninguém. Eu vou resolver isso.

— Você vai se matar por minha causa?

— Eu já morri quando entrei nesse mundo, boneca.

Ele saiu, trancando por fora. A tensão era um soco no estômago. Isabela tremia, mesmo tentando manter a pose. Ela não era fraca. Mas também não era à prova de bala.

E agora estava no centro de algo muito maior. Algo onde sentimentos se misturavam com sangue, e o amor… era uma linha de tiro.

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